VICTOR HUGO - BIOGRAFIA PENSAMENTO POLITICO

Pensamento político
Caricatura de Victor Hugo no ponto máximo de sua carreira política, por Honoré Daumier, (1849)

A partir de 1849, Victor Hugo dedica um quarto da sua obra à política, um quarto à religião e outro à Filosofia humana e social. Se o pensamento de Victor Hugo pode parecer complexo e às vezes contraditório, não se pode dizer que seja monoteísta.

Sempre um reformista, envolve-se em política por toda a sua vida. Mas se critica as misérias sociais, não adota o discurso socialista da luta de classes. Pelo contrário, ele próprio viveu uma vida financeiramente confortável, construída com seus próprios esforços, tornando-se um dos escritores mais bem remunerados de sua época. Acreditava no direito do homem usufruir dos frutos do seu trabalho, embora reforçasse a responsabilidade que acompanha o enriquecimento pessoal. Desse modo, sempre buscou prosperar enquanto doava uma parte significativa de sua renda para diferentes obras de caridades.

Seu principal romance, os Miseráveis, narra a história de um self made-man, Jean Valjean, um sujeito que foge da prisão e reconstrói sua vida através do trabalho. Valjean monta uma empresa e, através dela, traz prosperidade para a sua região; além disso, usa sua fortuna em obras de caridade para ajudar os pobres. Suas boas obras são interrompedias apenas quando um policial - um agente do Estado - decide interferir arbitrariamente nas atividades privadas da sociedade civil.

Os Miseráveis, portanto, traz claramente a filosofia política de Victor Hugo. É um mundo onde há cooperação - e não luta - entre as classes; onde o empreendedor desempenha um função essencialmente benéfica para todos; onde o trabalho é a via principal de aprimoramente pessoal e social; onde a intervenção estatal por motivos moralista - seja do policial ou do revolucionário obcecado pela justiça terrena - é um dos principais riscos para o bem de todos que será gerado espontaneamente pelos indivíduos privados.

Ele também se opõe à violência quando ela se aplica contra um poder democrático, mas a justifica (conforme à Declaração dos direitos do homem) contra um poder ilegítimo. É assim que, em 1851, lança um chamado à luta - "carregar seu fuzil e ficar preparado" - que não é seguido. Mantém esta posição até 1870, quando começa a Guerra Franco-Prussiana; Hugo a condena: "guerra de capricho" e não de liberdade.

Em seguida, o império é deposto e a guerra continua, desta vez contra a república; o argumento de Hugo em favor da fraternização resta, ainda, sem resposta. É assim que, em 17 de Setembro, publica uma chamada ao levantamento de massa e à resistência. Os republicanos moderados ficam horrorizados: preferem Bismarck aos "socialistas"! A população de Paris, no entanto, se mobiliza e lê avidamente Les Châtiments. (Ver Comuna de Paris).
Escultura de Victor Hugo, por Rodin.

Coerente, Hugo não podia ser comunista: "O significado da Comuna é imenso, ela poderia fazer grandes coisas, mas na verdade faz somente pequenas coisas. E pequenas coisas que são odiosas, é lamentável. Compreendam-me: sou um homem de revolução. Aceito, assim, as grandes necessidades, mas somente sob uma condição: que sejam a confirmação dos princípios e não o seu desrespeito. Todo o meu pensamento oscila entre dois pólos: civilização-revolução "." A construção de uma sociedade igualitária só será possível se for conseqüência de uma recomposição da sociedade liberal."

No entanto, diante da repressão que se abate sobre os comunistas, o poeta declara seu desgosto: "Alguns bandidos mataram 64 reféns. Replica-se matando 6000 prisioneiros!".

Denunciando até o fim a segregação social, Hugo declara durante a última reunião pública que preside: "A questão social perdura. Ela é terrível, mas é simples: é a questão dos que têm e dos que não têm!". Tratava-se precisamente de recolher fundos para permitir a 126 delegados operários a viagem ao primeiro Congresso socialista da França, em Marselha.

Victor Hugo, no entanto, nunca aceitou o discurso socialista. Ele acreditava que uma sociedade aberta encontraria soluções para seus problemas. Mais que isso, ele era contra políticas de redistribuição de riquezas, pois o efeito dessas seria desincentivar a produção, fazendo com que toda a sociedade caminhasse para trás. Caso fosse permitida a liberdade de comércio, por outro lado, e caso se tolerasse algum grau de desigualdade social, o resultado - largamente comprovado pela história posterior - seria o progresso geral de todos, beneficiando inclusive os membros mais pobres da sociedade. Portanto, a defesa de um ordem que permita o progresso é benéfica para todos, e não para uma classe específica.

"O comunismo e o agrarianismo acreditam que resolveram este segundo problema [da distribuição de renda], mas estão enganados: a distribuição destrói a produtividade. A repartição em partes iguais mata a ambição e, por conseqüência, o trabalho. É uma distribuição de açogueiros, que mata aquilo que reparte. Portanto, é impossível tomar essas pretensas soluções como princípio. Destruir riqueza não é distribuí-la".
Está pois a pena de morte abolida nesse nobre Portugal, pequeno povo que tem uma grande história. (...) Felicito a vossa nação. Portugal dá o exemplo à Europa. Desfrutai de antemão essa imensa glória. A Europa imitará Portugal. Morte à morte! Guerra à guerra! Viva a vida! Ódio ao ódio. A liberdade é uma cidade imensa da qual todos somos concidadãos
(Victor Hugo, 1876, a propósito da abolição da pena de morte em Portugal (o primeiro país europeu a fazê-lo).

VICTOR HUGO - BIOGRAFIA E OBRAS

Victor-Marie Hugo (Besançon, 26 de fevereiro de 1802 - Paris, 22 de maio de 1885) foi um escritor e poeta francês de grande atuação política em seu país. É autor de Les Misérables, sua melhor peça e de Notre-Dame de Paris, entre diversas outras obras.

Filho de Joseph Hugo e de Sophie Trébuchet, nasceu em Besançon, no Doubs, mas passou a infância em Paris. Estadas em Nápoles e na Espanha acabaram por influenciar profundamente sua obra. Funda com os seus irmãos em 1819 uma revista, o Conservateur littéraire (Conservador literário), que já chama a atenção para o seu talento. No mesmo ano, ganha o concurso da Académie des Jeux Floraux.

O seu primeiro recolhimento de poemas, Odes, é publicado em 1822: tem então vinte e sete anos.

Com Cromwell, publicado em 1827, alcança o sucesso. No prefácio deste drama em versos, que não foi encenado enquanto esteve vivo, opõe-se às convenções clássicas, em especial à unidade de tempo e à unidade de lugar.

Tem, até uma idade avançada, diversas amantes, sendo a mais famosa Juliette Drouet, atriz sem talento que lhe dedica a sua vida, e a quem ele escreve numerosos poemas. Ambos passavam juntos o aniversário do seu encontro e preenchiam, nesta ocasião, ano após ano, um caderno comum que nomeavam o Livro do aniversário.

Alugava apartamentos nos arredores de Paris com nomes falsos, onde encontrava-se com suas amantes. Numa dessas ocasiões foi flagradocom Léonie Briard, cujo o marido havia chamado a polícia, a mulher foi presa, quanto a Victor Hugo nada ocorreu-lhe.

Criado por sua mãe no espírito da monarquia, acaba por se convencer, pouco a pouco, do interesse da democracia ("Cresci", escreve num poema onde se justifica). A sua ideia é que "onde o conhecimento está apenas num homem, a monarquia se impõe." "Onde está num grupo de homens, deve fazer lugar à aristocracia. E quando todos têm acesso às luzes do saber, então vem o tempo da democracia".

Tendo se tornado favorável a uma democracia liberal e humanitária, é eleito deputado da Segunda República em 1848, e apoia a candidatura do príncipe Louis-Napoléon.
O enterro de Victor Hugo, em 1885.

Exila-se após o golpe de Estado de 2 de Dezembro de 1851, que condena vigorosamente por razões morais em "Histoire d'un crime".

Durante o Segundo Império, em oposição a Napoléon III, vive em exílio em Jersey, Guernsey e Bruxelas. É um dos únicos proscritos a recusar a anistia decidida algum tempo depois: « Et s'il n'en reste qu'un, je serai celui-là » ("e se sobra apenas um, serei eu").

Com a morte da sua filha, Leopoldina, começa a descobrir e investigar experiências espíritas relatadas numa obra diferente nomeada "Les tables tournantes de Jersey".

De acordo com seu último desejo, seu corpo é depositado em um caixão humilde que é enterrado no Panthéon.

Tendo ficado vários dias exposto sob o Arco do Triunfo, estima-se que 1 milhão de pessoas vieram lhe prestar uma última homenagem. Quando morreu as prostitutas de Paris ficaram de luto.



Obra
* Odes et Poésies Diverses (1822)
* Nouvelles Odes (1824)
* Bug-Jargal (1826)
* Odes et Ballades (1826)
* Cromwell (1827)
* Les Orientales (1829)
* Le Dernier jour d'un condamné (1829)
* Hernani (1830)
* Notre-Dame de Paris Nossa Senhora de Paris (1831)
* Marion Delorme (1831)
* Les Feuilles d'automne
* Le Roi s'amuse (1832)
* Lucrèce Borgia (1833)
* Marie Tudor (1833)
* Étude sur Mirabeau (1834)
* Littérature et philosophie mêlées (1834)
* Claude Gueux (1834)
* Angelo (1835)
* Les Chants du crépuscule (1835)
* Les Voix intérieures (1837)
* Ruy Blas (1838)
* Les Rayons et les ombres (1840)
* Le Rhin (1842)
* Les Burgraves (1843)
* Napoléon le Petit (1852)
* Les Châtiments (1853)
* Lettres à Louis Bonaparte (1855)
* Les Contemplations (1856)
* La Légende des siècles (1859)
* Les Misérables (1862)
* William Shakespeare (1864)
* Les Chansons des rues et des bois (1865)
* Les Travailleurs de la Mer (1866)
* Paris-Guide (1867)
* L'Homme qui rit (1869)
* L'Année terrible (1872)
* Quatrevingt-treize (1874)
* Mes Fils (1874)
* Actes et paroles - Avant l'exil (1875)
* Actes et paroles - Pendant l'exil (1875)
* Actes et paroles - Depuis l'exil (1876)
* La Légende des Siècles 2e série (1877)
* L'Art d'être grand-père (1877)
* Histoire d'un crime - 1re partie (1877)
* Histoire d'un crime - 2e partie (1878)
* Le Pape (1878)
* Vie ou de Mort (1875)
* Religions et religion (1880)
* L'Âne (1880)
* Les Quatre vents de l'esprit (1881)
* Torquemada (1882)
* La Légende des siècles - Tome III (1883)
* L'Archipel de la Manche (1883)
* 'uvres posthumes
* Théâtre en liberté (1886)
* La fin de Satan (1886)
* Choses vues - 1re série (1887)
* Toute la lyre (1888)
* Alpes et Pyrénées (1890)
* Dieu (1891)
* France et Belgique (1892)
* Toute la lyre - nouvelle série (1893)
* Correspondances - Tome I (1896)
* Correspondances - Tome II (1898)
* Les années funestes (1898)
* Choses vues - 2e série (1900)
* Post-scriptum de ma vie (1901)
* Dernière Gerbe (1902)
* Mille francs de récompense (1934)
* Océan. Tas de pierres (1942)
* Pierres (1951)
* Mélancholia

O HOMEM E A MULHER - VICTOR HUGO

O homem é a mais elevada das criaturas.
A mulher é o mais sublime dos ideais.
Deus fez para o homem um trono;
Para a mulher um altar.

O trono exalta; o altar santifica.
O homem é o cérebro; a mulher o coração, o amor.
A luz fecunda; o amor ressuscita.
O homem é o gênio; a mulher o anjo.

O gênio é imensurável; o anjo indefinível.
A aspiração do homem é a suprema glória;
A aspiração da mulher, a virtude extrema.
A glória traduz grandeza; a virtude traduz divindade.

O homem tem a supremacia; a mulher a preferência.
A supremacia representa força.
A preferência representa o direito.
O homem é forte pela razão; a mulher invencível pelas lágrimas.

A razão convence; a lágrima comove.
O homem é capaz de todos os heroísmos;
A mulher de todos os martírios.
O heroísmo enobrece; os martírios sublima.

O homem é o código; a mulher o evangelho.
O código corrige; o evangelho aperfeiçoa.
O homem é o templo; a mulher, um sacrário.
Ante o templo, nos descobrimos;

Ante o sacrário ajoelhamo-nos.
O homem pensa; a mulher sonha.
Pensar é ter cérebro;
Sonhar é ter na fronte uma auréola.

O homem é um oceano; a mulher um lago.
O oceano tem a pérola que embeleza;
O lago tem a poesia que deslumbra.
O homem é a águia que voa; a mulher o rouxinol que canta.

Voar é dominar o espaço; cantar é conquistar a alma.
O homem tem um fanal; a consciência;
A mulher tem uma estrela: a esperança.
O fanal guia, a esperança salva.

Enfim...
O homem está colocado onde termina a terra;
A mulher onde começa o céu...

O Corcunda de Notre-Dame, Victor Hugo

O Corcunda de Notre-Dame - Hugo, Victor, 1802-1885.

Adaptação em português e textos suplementares Welington Andrade

Sumário

Capítulo 1 A grande sala
Capítulo 2 Esmeralda
Capítulo 3 0 jarro quebrado
Capítulo 4 As boas almas
Capítulo s A magistratura
Capítulo 6 O buraco dos ratos
Capítulo 7 Uma lágrima por uma gota d'água
Capítulo 8 Fatalidade
Capítulo 9 A moeda transformada em folha seca
Capítulo 10 A mãe
Capítulo 11 Corcunda, caolho, manco
Capítulo 12 Gringoire tem boas idéias
Capítulo 13 Viva a alegria
Capítulo 14 Châteaupers vem em socorro Por dentro do texto

O Corcunda de Notre-Dame, Victor Hugo - 1

CAPÍTULO 1
A grande sala

No dia 6 de janeiro de 1482, os parisienses acordaram ao som de todos os sinos soando com força na cidade. O que emocionava o povo era a celebração do Dia de Reis e da Festa dos Loucos. Haveria fogueiras na Praça da Greve, a plantação de uma árvore na Capela de Braque e a representação de um mistério - a forma teatral mais popular da época - no Palácio da Justiça.
A multidão de burgueses movimentava-se por todas as direções desde a manhã e as casas e as lojas estavam fechadas nas proximidades de cada um dos locais dos festejos. Deve-se dizer que a maior parte das pessoas dirigia-se ou para as fogueiras, muito comuns naquela época, ou à representação teatral.
A peça começaria apenas ao soar a décima segunda badalada do meio-dia no relógio do Palácio e seria representada sobre uma plataforma com muitos ornamentos dourados. Já era tarde para um espetáculo teatral, no entanto, a platéia o aguardava desde a manhã, aumentando sem cessar. O desconforto, a impaciência, as brigas que ocorriam constantemente e a fadiga de uma longa espera davam um clima ácido e amargo ao murmúrio da multidão encurralada, irritada e sufocada.
Ouviam-se apenas reclamações e maldições contra os embaixadores flamengos que haviam chegado há dois dias para preparar o casamento do delfim (como eram chamados os príncipes herdeiros) com a princesa Margarida de Flandres. Falava-se mal também do chefe dos comerciantes, do cardeal de Bourbon, do meirinho do Palácio, dos sargentos, do frio, do calor, do mau tempo, do Papa dos Loucos, do bispo de Paris, dos pilares, das estátuas, desta porta fechada, daquela janela aberta, de tudo, enfim.
Bandos de estudantes espalhados pela multidão misturavam ao descontentamento geral suas caçoadas e malícias, espetando, por assim dizer, com golpes de alfinete o mau humor geral. Houve um grupo mais exaltado que, após quebrar os vidros de uma janela, sentou-se audaciosamente sobre o parapeito e dali lançava, alternadamente, olhares e gozações para a multidão do salão e da praça.
Por suas paródias e risos ruidosos e pelos nomes zombeteiros com os quais eles se chamavam, era fácil constatar que esses estudantes não partilhavam o cansaço do restante do público. Eles sabiam muito bem transformar o que tinham diante dos olhos em um espetáculo tão prazeroso quanto aquele pelo qual aguardavam.
Todos gritavam e se cumprimentavam e assim que o irmão do magistrado do Palácio, Gilles Lecornu, apareceu, explodiram gracejos contra ele, que, suando e bufando, perdeu a calma:
- Que horror estudantes dizerem tais coisas a um burguês! No meu tempo, eles teriam sido castigados com um feixe de varas e queimados em seguida.
A alegria e a zombaria tornaram-se mais intensas. Enfim, soou meio-dia e o tumulto deu lugar ao silêncio. Todos os olhares se moveram em direção ao palco, mas ninguém surgiu sobre ele. Desta vez, era demais.
Esperou-se um, dois, três minutos, um quarto de hora e nada se passou. A plataforma continuava deserta; o teatro, mudo. No entanto, a impaciência foi seguida pela cólera. Os comentários irritados circulavam, ainda em voz baixa, é verdade. "O mistério! O mistério!", murmurava-se surdamente. As cabeças se agitavam e um clima de revolta, que ainda apenas ressoava, pairou sobre a multidão.
- Saquear! Saquear! - ouviu-se por toda parte.
Neste instante, a cortina do fundo foi levantada, dando passagem a um personagem que anunciou que iria representar o papel de Júpiter na peça:
- Assim que o eminentíssimo cardeal chegar, nós começaremos.
Mas sua voz se perdeu numa tempestade de vaias.
- Comecem o mistério, agora! - gritou o público.
A cólera popular estava prestes a explodir com violência redobrada, quando um personagem que era ninguém menos do que o autor da peça, Pierre Gringoire, tomou o lugar de Júpiter e deu-lhe ordem de começar imediatamente.
- Viva! - gritou o público.
Houve um som de palmas ensurdecedor e Júpiter entrou pela cortina, deixando para trás o salão a tremer com os aplausos. Logo, então, pôde-se admirar a peça, intitulada "A provação da Virgem", uma obra muito bonita.
O público escutava com atenção, quando, de repente, bem no meio de uma cena, a porta da plataforma reservada,que até aquele momento estava fechada, se abriu e uma voz retumbante anunciou:
- Sua Eminência, o cardeal de Bourbon.
Pobre Gringoire! De tudo o que ele poderia temer, aconteceu o pior. A entrada de Sua Eminência pôs o auditório de pernas para o ar. Todas as cabeças se voltaram para a plataforma e nada mais se pôde ouvir.
- O cardeal! O cardeal! - repetiram todas as bocas.
Sua Eminência, então, parou um momento na entrada da plataforma e, enquanto olhava indiferente para o auditório, o tumulto aumentou. Todos queriam vê-lo melhor, mas só conseguiam aqueles que podiam colocar a cabeça sobre o ombro do vizinho.
O cardeal entrou, saudou o público e se dirigiu a passos lentos à sua poltrona de veludo vermelho, com um ar de estar pensando em outra coisa. Seu cortejo de bispos e abades apareceu em seguida, não sem um aumento ainda maior do tumulto e da curiosidade.
Após o cardeal de Bourbon, chegaram, dois a dois, os enviados do Duque da Áustria. Não era mais possível pensar no espetáculo teatral e o pobre Gringoire ficou agitado, sem poder, imediatamente, juntar-se aos comediantes e reconduzir a atenção ao que acontecia em cena.
Entre os recém-chegados destacavam-se os burgueses flamengos, ao mesmo tempo dignos e severos, de famílias parecidas com aquelas a quem o pintor Rembrandt retratou com tanto talento no quadro Ronda noturna. Estavam ali, entre outras pessoas, Guillaume Rym e Jacques Coppenole. Este último, um burguês que não negava a origem humilde - era fabricante de meias -, chamou a atenção de todos desde que se pôs a falar com familiaridade a um mendigo chamado Clopin Trouillefou. O pedinte subira num galho ao lado do palco, sem se preocupar com o protocolo, de onde gritava várias vezes:
- Caridade, pelo amor de Deus.
Tudo ia de mal a pior, porque Jacques Coppenole, enquanto os atores retomavam seus papéis, levantou-se de repente e se pôs a discursar para o público:
- Senhores burgueses e fidalgos de Paris, o que fazemos aqui? Vejo sobre este palco atores fingindo que querem brigar. Não sei se é a isto que os senhores dão o nome de mistério, mas não é divertido. Eles brigam com palavras e mais nada. Já faz um quarto de hora que aguardo o primeiro golpe e nada acontece. São covardes que se arranham apenas com injúrias. Deviam fazer vir lutadores de Londres ou de Roterdã e, no momento certo, os senhores teriam socos que ouviríamos da praça. Não está acontecendo aquilo que me haviam dito que ocorreria. Prometeram-me uma Festa dos Loucos, com eleição do papa. Nós também temos nosso Papa dos Loucos em Gand e nisso não estamos atrás, mas vejam como fazemos. Reunimo-nos em multidão, como aqui. Depois, cada um mostra a cabeça através de um buraco e faz uma careta aos outros. Aquele que fizer a careta mais feia é aclamado por todos e eleito papa. É muito divertido. Os senhores desejam que nós façamos a eleição de seu papa da mesma forma que em meu país?
Gringoire quis protestar, mas a indignação e a ira lhe tiraram a voz. Aliás, a proposta do fabricante de meias foi acolhida com tal entusiasmo pelos burgueses, lisonjeados por terem sido tratados como fidalgos que qualquer resistência seria inútil.
Num piscar de olhos, estava tudo pronto para a execução da idéia de Coppenole. Burgueses e estudantes colocaram mãos à obra: a pequena capela situada diante da mesa de mármore foi escolhida para ser o teatro de caretas e uma vidraça quebrada do vitral sobre a porta deixou livre um círculo de pedra através do qual se decidiu que os participantes enfiariam a cabeça. Para isso, era necessário apenas subir em dois tonéis, empoleirados um sobre o outro, que haviam sido trazidos não se sabe de onde.
Combinou-se que cada candidato, homem ou mulher (porque poderíamos ter uma papisa), deveria cobrir o rosto, permanecendo escondido dentro da capela até o momento de fazer sua aparição. Em menos de um instante, o lugar estava cheio de competidores, atrás dos quais a porta foi fechada.
As caretas começaram. A primeira figura que surgiu na janela, com os olhos revirados, a boca escancarada e a testa enrugada fez com que explodisse uma gargalhada interminável. Uma segunda e uma terceira careta se sucederam, depois outra e mais outra e sempre os risos e as alegres batidas de pés no chão aumentavam.
De repente, uma tempestade de aplausos, misturada a uma aclamação prodigiosa, aconteceu. O Papa dos Loucos havia sido eleito.
- Viva! Viva! - gritaram as pessoas por toda parte.
Era uma careta maravilhosa que irradiava no buraco do vitral. Após todas as figuras extravagantes que se sucederam na janela, nenhuma outra poderia conseguir os votos além da careta sublime que acabara de deslumbrar o público. O próprio Coppenole aplaudiu.
A aclamação foi unânime. Uma multidão entrou na capela e fez com que saísse em triunfo o afortunado Papa dos Loucos, mas foi neste momento que a surpresa e a admiração atingiram o ápice. A careta era o próprio rosto, ou melhor, a pessoa toda era uma horrível careta: uma cabeça grande ouriçada de cabelos ruivos; entre os dois ombros, uma Corcunda enorme da qual o contragolpe se fazia sentir na parte frontal de seu corpo; um sistema de coxas e de pernas tão estranhamente tortas que se tocavam apenas por meio dos joelhos; pés grandes, mãos monstruosas e, apesar da deformidade, uma aparência formidável de vigor, agilidade e coragem. Poderíamos dizer que se tratava de um gigante que se partira, tendo sido mal colado. Assim era o Papa que os Loucos acabavam de escolher.
- É Quasímodo, o sineiro! - gritaram. - É Quasímodo, o Corcunda de Notre-Dame! Quasímodo, o caolho! Quasímodo, o aleijado! Viva!
Estamos vendo que o infeliz tinha sobrenomes de sobra para escolher. Quasímodo, objeto do tumulto, mantinha-se na porta da capela, de pé, triste e sério, e se deixava admirar.
Um estudante, Robin Poussepain, veio rir diante de seu nariz, e muito perto. O Corcunda limitou-se a levantá-lo pela cintura e a atirá-lo a dez passos de distância através da multidão, sem dizer uma só palavra.
Todos os mendigos e ladrões aos quais se juntaram os estudantes foram em procissão buscar no armário do tribunal a tiara de papel e a patética e grosseira veste de pele de ovelha do Papa dos Loucos. Quasímodo se deixou vestir sem pestanejar, com uma certa docilidade orgulhosa. Em seguida, colocaram-no sentado numa cadeira colorida que doze oficiais da Confraria dos Loucos levantaram em seus ombros. Então, uma alegria amarga e arrogante floresceu na face carrancuda daquela espécie de monstro mitológico, quando ele viu sob seus pés disformes todas as cabeças de belos homens, eretos e bem feitos.
Depois, a procissão estridente se colocou a caminho para fazer, de acordo com o costume, o passeio pelo interior das galerias do Palácio, antes de desfilar pelas ruas e cruzamentos. A multidão saiu à rua e neste momento outros gritos ressoaram:
- Esmeralda! Esmeralda! Ela está Iá! Ela está Iá!
- O que isto quer dizer: Esmeralda? - perguntou o único espectador da peça, Pierre Gringoire, desolado.
É preciso dizer que durante a eleição, a encenação do mistério continuou, pois os atores e Gringoire não interromperam a obra. Um brilho de esperança ressurgiu quando o autor viu o Papa dos Loucos e seu cortejo ensurdecedor saírem ruidosamente do salão, mas, infelizmente, aquela multidão era o público e, num piscar de olhos, o grande salão ficou vazio...
Era o último golpe e Gringoire recebeu-o com resignação.
- Azar de quem não assistiu a uma obra sublime! - disse aos atores. - Se eu for pago, acerto as contas com vocês.

O Corcunda de Notre-Dame, Victor Hugo - 2


CAPÍTULO 2
Esmeralda


Quando Gringoire saiu do Palácio, as ruas já estavam às escuras e a noite o agradou. Ele ansiava caminhar para meditar à vontade sobre o fracasso da representação teatral. Além disso, não ousava voltar para casa, pois contava com o pagamento que receberia pela peça para saldar os seis meses de aluguel que devia ao proprietário do imóvel. Depois de refletir por um momento, lembrou-se de ter visto na semana anterior, na porta de um conselheiro do Parlamento, um banco de pedra. Na ocasião, ele disse para si mesmo que aquela pedra seria, oportunamente, um excelente travesseiro para um mendigo ou para um poeta.
Ele agradeceu à Providência por lhe ter enviado esta boa idéia, mas, como se preparava para cruzar a Praça do Palácio, viu a procissão do Papa dos Loucos atravessar seu caminho novamente, com altos brados e um grande clarão de tochas. Esta visão reavivou as feridas de seu amor próprio e ele partiu. No amargor de sua desventura dramática, tudo que lembrasse a festa do dia o exasperava e fazia sangrar sua ferida.
Gringoire quis atravessar a ponte Sant-Michel, onde crianças corriam aqui e ali com rojões. Mais adiante, a multidão admirava bandeiras sobre as quais o pintor Jehan Fourbault havia desenhado o retrato do rei, do delfim e de outros personagens importantes. "Feliz pintor Jehan Fourbault!", pensou Gringoire com um grande suspiro e deu as costas às bandeirolas.
Ele encontrou uma rua diante de si e a achou tão escura e tão abandonada que acreditou que ali poderia escapar de todas as influências da festa. Caminhou por ela e chegou à margem do rio Sena. Depois de andar ao longo do grande muro dos jardins naquela praia não calçada onde a lama atingia o tornozelo, ele chegou a um ponto de onde observou durante algum tempo uma pequena ilha.
A ilhota na sombra parecia uma massa negra e nela percebia-se o reflexo de uma pequena luz que emanava da cabana do barqueiro solitário que lá se abrigava durante a noite.
"Feliz barqueiro!", pensou Gringoire, "Você não busca a glória. De que lhe importam os reis que se casam e as duquesas da Borgonha? Você não conhece outras margaridas além das que planta em seu gramado. Já eu, poeta, sou vaiado e tremo de frio. A sola de meus sapatos é tão transparente que poderia servir de vidro para sua lanterna. Obrigado! Sua cabana descansa minha vista e me faz esquecer de Paris!"
O poeta despertou deste devaneio por um grande fogo de artifício duplo que partiu repentinamente da cabana abençoada. Era o barqueiro que, à sua maneira, participava das festividades do dia, soltando um rojão.
O rojão arrepiou a pele de Gringoire.
- Maldita festa - gritou ele - que irá me perseguir por toda parte! Ah, meu Deus! Até nesta pequena ilha quase deserta!
Em seguida, ele observou o rio Sena a seus pés e uma terrível sensação invadiu-lhe o corpo:
- Com que boa vontade eu me afogaria se a água não estivesse tão fria!
Então, surgiu nele uma resolução desesperada. Já que não podia escapar do Papa dos Loucos, das bandeiras do pintor Jehan Fourbault e dos fogos de artifício, que mergulhasse bravamente no próprio coração da festa e fosse para a Praça da Greve!
"Pode ser", pensou, "que eu consiga uma centelha de fogueira para me aquecer e até mesmo jante por lá."
Quando Pierre Gringoire chegou à Praça da Greve, congelava de frio. Ele havia evitado a multidão e as bandeirolas de Jehan Fourbault, mas as rodas de todos os moinhos pelos quais passou o haviam molhado, encharcando sua blusa.
Ele apressou-se em se aproximar da fogueira que queimava magnificamente no meio da praça, mas uma multidão considerável estava à sua volta. Examinando mais de perto, percebeu que o círculo era grande demais para que todos desejassem se aquecer no fogo e que este grupo de espectadores não fora atraído unicamente pela beleza dos galhos que queimavam.
Num vasto espaço deixado livre entre a multidão e a fogueira, uma moça dançava. Ela não era grande, mas parecia, de tanto que sua pequena figura se lançava aos movimentos. Era morena, mas percebia-se que durante o dia sua pele devia ter o reflexo dourado das mulheres espanholas ou italianas. Seus pés pequenos dançavam à vontade nos sapatos graciosos. Ela girava e se contorcia sobre um velho tapete persa e, cada vez que a face radiante passava diante de alguém, seus grandes olhos negros atiravam um raio.
Em torno dela, concentravam-se olhares fixos e bocas entreabertas. Enquanto ela dançava assim ao som do tambor, os braços se elevavam acima da cabeça pequena, frágil e viva como uma vespa, com seu corpete de ouro, seu vestido colorido, seus cabelos negros, seus olhos de chamas. Com efeito, ela era uma cigana!
"Na verdade", pensou Gringoire, "é uma deusa".
Neste momento, uma das tranças dos cabelos da "divindade" desprendeu-se e um pedaço de cobre amarelo rolou por terra.
- Oh, não! - ele exclamou. - É uma cigana!
Toda ilusão havia desaparecido, pois ela de fato era uma cigana.
Entre os rostos que o fogo tingia de escarlate, havia um que parecia absorvido pela contemplação da dançarina mais que todos os outros. Era severo, calmo e sinistro. Este homem, cujos trajes estavam escondidos pela multidão que o cercava, não parecia ter mais que trinta e cinco anos e, no entanto, era careca. As têmporas mal sustentavam alguns raros tufos de cabelo, já brancos. A testa larga e alta começava a se encher de rugas, mas nos olhos fundos brilhava uma juventude extraordinária. Ele os mantinha sem cessar presos à cigana e, enquanto a moça de dezesseis anos dançava e esvoaçava para o prazer de todos, seus devaneios tornavam-se cada vez mais sombrios.
A jovem, sem fôlego, enfim parou e o povo a aplaudiu.
- Djali - disse a cigana.
Gringoire viu, então, chegar uma pequena cabra branca, alegre e lustrosa, com chifres dourados, pés dourados e uma coleira dourada.
- Djali - disse a dançarina -, é sua vez. Sentando-se, ela apresentou graciosamente seu tambor à cabra.
- Djali - continuou -, em que mês nós estamos?
A cabra levantou a pata dianteira e bateu uma única vez no tambor. Realmente, era o primeiro mês do ano e a multidão aplaudiu.
- Djali - prosseguiu a cigana -, em que dia do mês estamos?
O animal levantou o pé dourado e bateu seis vezes no tambor.
- Djali - continuou a cigana, sempre com um novo truque ao bater o tambor -, que horas são?
A cabra bateu sete vezes. No mesmo momento, o relógio da Casa dos Pilares soou sete horas e a multidão maravilhou-se.
- Isto é bruxaria - disse a voz sinistra do homem careca que não tirava os olhos da cigana, no meio da multidão.
A moça recuou e se virou.
- Sacrilégio! Profanação! - recomeçou a voz. A cigana se virou mais uma vez.
- Ah, só podia ser este homem repulsivo!
Em seguida, esticando o lábio inferior para além do lábio superior, ela fez um pequeno beiço com o qual parecia estar familiarizada, deu uma pirueta sobre o calcanhar e se pôs a recolher em seu tambor as doações da multidão.
De repente, passou diante de Gringoire. Este colocou a mão tão irrefletidamente no bolso que ela parou.
- Droga! - disse o poeta, encontrando no fundo do bolso a realidade, ou seja, o vazio.
No entanto, a moça permaneceu ali, estendendo-lhe o tambor e esperando. Gringoire suava, e, felizmente, um acontecimento inesperado veio em seu socorro.
- Vá embora, gafanhoto do Egito! - disse uma voz ácida que partiu do canto mais escuro da praça.
A moça virou-se, amedrontada. Não era mais a voz do homem e, sim, uma voz feminina, que repetiu:
- Suma daqui, gafanhoto do Egito!
- É a enclausurada da Tour-Roland! - gritaram algumas crianças, em tom de gozação. - Por que será que ela está nervosa? Será que ainda não jantou?
Gringoire aproveitou-se do problema da dançarina para desaparecer. O clamor das crianças lembrou-o de que ele também não havia jantado. Coisa inoportuna é dormir sem comer. Menos agradável ainda é não jantar e não saber onde dormir. O poeta estava nesta situação: sem dinheiro, sem pão, sem lar.
Pensava ele sobre esta triste condição, quando um canto cheio de doçura, arrancou-o de sua melancolia: era a jovem egípcia novamente, que desta vez cantava. A voz era como sua beleza: fascinante, pura, etérea.
As palavras que ela cantava eram de uma língua desconhecida por Gringoire e ele as escutava encantado. Depois de várias horas, este era o primeiro momento em que ele não sofria, pena que tenha durado tão pouco! A mesma voz de mulher que havia interrompido a dança da cigana também veio interromper-lhe o canto.
- Quer se calar, cigarra do mal! - ela gritou novamente do canto escuro da praça.
A pobre "cigarra" parou de súbito e Gringoire tapou os ouvidos.
- Ah! - disse ele. - Maldita serra sem corte que interrompe este canto doce.
Os outros espectadores murmuraram:
- Cale-se, velha estúpida!
E ela poderia ter se arrependido das agressões contra a cigana, se eles não se distraíssem nesse exato momento pela passagem do Papa dos Loucos, que, após ter percorrido muitas ruas e cruzamentos, desembocava na Praça da Greve com todas as suas tochas.
A procissão que partiu do Palácio organizou-se ao longo do caminho, recrutando todos os ladrões, vadios e mendigos disponíveis de Paris - o que lhe dava um aspecto bizarro.
No centro da multidão, os grãos-oficiais da confraria dos Loucos carregavam nos ombros uma cadeira cheia de velas no meio da qual resplandecia sentado, com todos os aparatos, o novo Papa dos Loucos: o tocador dos sinos de Notre-Dame, Quasímodo, o Corcunda.
É difícil dar uma idéia do orgulho que Quasímodo sentia. Era a primeira alegria de amor-próprio que ele jamais havia experimentado. Conhecia o sineiro até então apenas o desdém por sua condição, a aversão por sua pessoa. Como era totalmente surdo, saboreava as aclamações da multidão que ele odiava. Que importava se seus adoradores fossem um bando de loucos, ladrões e mendigos! Era ainda uma multidão e ele, o soberano. A patética figura levava a sério todos os aplausos irônicos e todas as deferências ridículas que se misturavam a um pouco de medo, porque o Corcunda era robusto.
Portanto, foi com certa apreensão que todos viram de repente um homem lançar-se no meio da multidão e arrancar das mãos de Quasímodo o bastão de madeira dourada, símbolo de seu delirante papado.
Este homem, vestido com o hábito eclesiástico, era o sujeito calvo que assistira antes à dança da cigana. No momento em que saiu da multidão, Gringoire, que não o havia visto até então, reconheceu-o.
- Espere! - disse, com um grito de surpresa. - É dom Cláudio Frollo, o arcebispo. O que ele quer desse horrível caolho? Vai acabar devorado.
Um grito de terror se elevou. Quasímodo pulou da cadeira e as mulheres viraram o rosto para não vê-lo fazer em pedaços o arcebispo.
Mas ele saltou até o padre e se pôs de joelhos. O religioso arrancou-lhe a tiara, quebrou o bastão e rasgou suas vestes de papa. Quasímodo, ajoelhado, abaixou a cabeça. Em seguida, estabeleceu-se entre eles um estranho diálogo de sinais e gestos, porque nem um nem outro falava: o padre, de pé, irritado, ameaçador, categórico; Quasímodo, curvado, humilde, suplicante. No entanto, o Corcunda poderia esmagá-lo com as mãos.
Enfim, o arcebispo, sacudindo o ombro de Quasímodo, fez um sinal para que ele se levantasse e o seguisse. A Confraria dos Loucos, passado o susto, quis defender o papa destronado, mas Quasímodo se colocou na frente do padre e encarou os atacantes com o ranger de dentes de um tigre zangado.
O padre assumiu um ar sombrio, fez um sinal para Quasímodo e se retirou em silêncio. O Corcunda caminhava diante dele, afastando a multidão à sua passagem. Quando eles acabaram de atravessar a praça, o bando de curiosos e de vadios quis acompanhá-los, porém Quasímodo se colocou na retaguarda e seguiu o mestre, urrando como uma fera selvagem.
Os dois entraram em uma rua estreita e escura, onde ninguém ousaria se arriscar.
- Veja só que maravilha! - disse Gringoire. - Mas onde irei jantar?

O Corcunda de Notre-Dame, Victor Hugo - 3

CAPÍTULO 3
O jarro quebrado

Gringoire, pelo sim pelo não, pôs-se a seguir a cigana. Ele a viu entrar, com sua cabra, na rua de La Coutellerie e caminhava, pensativo, atrás da moça, que apertava o passo vendo os burgueses fecharem suas tabernas, o único tipo de comércio aberto naquele dia. As ruas estavam escuras e desertas. O toque de recolher soara há muito tempo e apenas alguns raros indivíduos restavam. Gringoire entrou, seguindo a cigana, no labirinto de ruelas, cruzamentos e becos sem saída que cercam o antigo Cemitério dos Santos Inocentes.
Após alguns instantes, ela percebeu que estava sendo seguida. Por várias vezes, ela se virou para ele com inquietude e até parou uma hora, aproveitando um raio de luz que escapava de uma taberna entreaberta, para olhá-lo fixamente. Em seguida, Gringoire a viu fazer o beiço que ele já tinha notado e ela o ignorou.
A certa altura, ele a perdeu de vista e minutos depois ouviu um grito de pavor. O poeta, então, apertou o passo.
Um pequeno lampião a gás que estava aceso na esquina permitiu distinguir a cigana debatendo-se nos braços de dois homens que tentavam abafar seus gritos, enquanto a pobre cabra balia de medo.
- Larguem a pobre moça! - gritou Gringoire, avançando bravamente.
Um dos homens que segurava a cigana virou-se em sua direção: era o rosto formidável de Quasímodo. O poeta não fugiu, mas não deu nem mais um passo. O Corcunda aproximou-se dele, deixou-o de quatro sobre a calçada com um golpe dado com as costas da mão e mergulhou na escuridão, levando a moça dobrada sobre um de seus ombros como um cachecol. O companheiro o seguia e a pobre cabra corria atrás dos dois com seu balido melancólico.
- Assassino! Assassino! - gritava ela.
- Alto lá, miseráveis, entreguem-me esta mulher - disse de repente, com uma voz de trovão, um cavaleiro que surgiu bruscamente do cruzamento vizinho.
Era o capitão dos arqueiros da ordem do rei, armado dos pés à cabeça e com a espada em punho. Ele arrancou a cigana dos braços de Quasímodo e colocou-a atravessada em seu cavalo. No momento em que o Corcunda, passada a surpresa, avançou sobre ele para recuperar a presa, quinze ou dezesseis arqueiros, que seguiam de perto o capitão, apareceram de armas na mão.
O sineiro foi dominado e amarrado. Ele rugia, espumava e mordia e se o dia estivesse claro, sem dúvida, apenas seu rosto, mais horrendo ainda devido à ira, teria feito fugir toda a esquadra. Mas, à noite, ele não podia contar com sua arma mais formidável: a feiúra.
O homem que o acompanhava desapareceu durante a luta. A cigana se ajeitou graciosamente sobre a sela do oficial e o observou fixamente durante alguns segundos, como que deleitada por sua boa aparência e pelo socorro que ele acabara de lhe prestar. Em seguida, foi a primeira a quebrar o silêncio, falando docemente:
- Como o senhor se chama, senhor policial?
- Capitão Febo de Châteaupers, a seu serviço! - respondeu ele, endireitando-se.
Enquanto o capitão retorcia seu bigode, ela se deixou escorregar do cavalo e fugiu. Um raio não teria desaparecido tão rápido.
Gringoire, aturdido pela queda, permaneceu na calçada. Pouco a pouco, recobrou os sentidos, e rapidamente uma sensação muito viva de frio acordou-o completamente. Ele havia caído no córrego.
- Maldito Corcunda! - resmungou entre os dentes.
Ele se levantou e retomou seu caminho. Após um momento, percebeu um brilho avermelhado no final de uma ruela estreita e longa.
- Deus seja louvado! Ali está sem nenhuma dúvida o calor de uma fogueira para que eu possa me secar e me aquecer.
Ele apenas havia dado alguns passos na longa ruela sem calçamento e cada vez mais enlameada, quando percebeu algo bastante singular. Ela não estava deserta. Aqui e ali, rastejavam massas humanas disformes, todas se dirigindo em direção à luz que vacilava no final da rua.
Gringoire continuou a avançar e logo se juntou a uma larva que demorava mais preguiçosamente a seguir as outras. Aproximando-se, ele percebeu que era apenas um aleijado que saltitava sobre as mãos e prosseguiu. Chegou perto de outra massa ambulante e a examinou. Era um paralítico, ao mesmo tempo coxo e sem um braço, tão coxo e tão sem braço que o sistema complicado de muletas que o sustentava dava-lhe o aspecto de um andaime que caminhava.
Ele quis apressar o passo, mas pela terceira vez algo barrou seu caminho. Esta coisa, ou antes, esta pessoa era um cego, um pequeno cego que tateava no espaço, rebocado por um grande cachorro.
Gringoire continuou seu caminho, mas o cego apressou o passo ao mesmo tempo. Tanto o paralítico quanto o aleijado avançaram com pressa e um grande ruído de moedas e de muletas foi ouvido sobre a calçada.
O poeta pôs-se a fugir e todos o seguiram. À medida que ele corria, pernetas, cegos e coxos multiplicavam-se ao redor. Manetas, zarolhos e leprosos também saíam das ruas adjacentes, das janelas dos porões, das adegas, urrando, mugindo, uivando, todos coxeando, mancando e pisando na lama como lesmas após a chuva.
Gringoire, sempre à frente dos três perseguidores, tentou, amedrontado, enfiar-se no meio dos outros. Quis voltar, mas era tarde demais. Aquela legião o cercou, mas ele continuou, empurrado ao mesmo tempo por esta onda, pelo medo e por uma vertigem que transformava tudo aquilo numa espécie de sonho horrível.
Por fim, atingiu a extremidade da rua, que terminava numa praça imensa, onde mil luzes dispersas cintilavam no nevoeiro confuso da noite. Gringoire fugiu para Iá, esperando escapar pela velocidade de suas pernas dos três fracos espectros que fixavam os olhos nele. De repente, o paralítico atirou longe as muletas e passou a persegui-lo com as duas melhores pernas que jamais haviam dado um passo sobre as calçadas de Paris, enquanto o coxo endireitou-se sobre os pés e o cego o encarava com olhos que resplandeciam.
- Onde estou? - perguntou o poeta, aterrorizado.
- No Pátio dos Milagres - respondeu um quarto espectro que o alcançara.
Gringoire olhou ao redor de si. Estava realmente no temível Pátio dos Milagres, onde nunca um homem honesto havia penetrado a tal hora. Um círculo mágico no qual os soldados do rei que se arriscavam a entrar eram feitos em migalhas.
Tratava-se de uma praça vasta, irregular e mal pavimentada, como todas as praças de Paris. Havia fogueiras ao redor das quais se juntavam grupos estranhos aqui e ali. Escutavam-se risos agudos, choros de crianças, vozes de mulheres.
Gringoire, cada vez mais amedrontado, dominado pelos três mendigos, ensurdecido pela multidão que uivava em torno dele, percebeu que havia caído em desgraça. Neste momento, ouviu-se um grito:
- Vamos levá-lo ao rei! Ao rei!
- Virgem santíssima! - murmurou Gringoire. - O rei deste lugar deve ser um sujeito terrível!
- Ao rei! Ao rei!
Enquanto era levado, todos queriam pôr as garras sobre ele, mas os três mendigos não o soltavam, arrancando-o dos outros, com urros:
- Ele é nosso!
O casaco já gasto do poeta deu seu último suspiro nesta luta. Ao fim de alguns passos, seu senso de realidade retornou e ele começou a perceber a atmosfera do lugar. Examinando as coisas com mais sangue frio, observou: o Pátio dos Milagres era apenas um cabaré, um cabaré de bandidos.
Ao redor de uma fogueira que queimava sobre uma grande pedra redonda, havia algumas mesas arrumadas ao acaso. Sobre elas, brilhavam algumas garrafas cheias de vinho e em torno destas garrafas agrupavam-se rostos avermelhados pelo fogo e pela bebida. Risos estouravam por toda a parte, brigas aconteciam.
Sobre um tonel perto do fogo, estava sentado um mendigo. Era o rei acomodado sobre seu trono. Os três conduziram Gringoire diante dele e o soberano, do alto do barril, dirigiu-lhe a palavra.
Gringoire teve um sobressalto. A voz lembrava aquela ouvida de manhã: "Caridade, pelo amor de Deus!". O rei dos mendigos era, com efeito, Clopin Trouillefou.
Coberto de insígnias reais, ele não tinha um trapo a mais nem a menos. Na mão carregava um chicote com correias de couro branco. Sobre a cabeça, portava um tipo de chapéu circular, fechado pela parte superior. Gringoire, sem saber por que, recobrou a esperança ao reconhecer nessa figura o mendigo do salão.
- Senhor... - balbuciou - Alteza... Amo... Como devo chamá-lo? - perguntou por fim.
- Alteza, majestade ou camarada... Chame-me como quiser, mas apresse-se. O que tem a dizer em sua defesa?
"Minha defesa?", pensou Gringoire, "Isto não me agrada". E continuou gaguejando:
- Fui eu quem esta manhã...
- Somos seus juizes! - interrompeu Clopin. - Você entrou em nosso reino, violou nossa cidade. Deve ser punido, a menos que seja um ladrão, mendigo ou vagabundo. Pratica alguma dessas profissões, hein? Justifique-se. Apresente suas qualidades.
- Sou o autor da peça que foi encenada esta manhã.
- Já é suficiente - retomou Clopin, sem deixá-lo terminar. - Será enforcado!
Gringoire tentou um último recurso.
- Perdão, alteza! Não me condene sem me ouvir...
- Não vejo por que não enforcá-lo! Isto parece repugná-lo? - disse Clopin, acariciando o queixo. - Mas, no fim das contas, não lhe queremos mal. Há somente um meio para tirá-lo desta situação: quer ser um dos nossos?
Pode-se julgar o efeito que esta proposta teve sobre Gringoire, que via a vida lhe escapar e agarrou a oportunidade energicamente.
- Quero, certamente! - disse.
- Consente em se juntar a nós? Saiba - continuou Clopin - que você não irá escapar da forca apenas por isso. Somente será enforcado mais tarde, com mais cerimônia, com as despesas pagas pela boa cidade de Paris, numa bela forca de pedra, por pessoas decentes. É um belo consolo. Você ainda deseja ser um dos nossos?
- Sem dúvida - respondeu Gringoire.
- Não basta querê-lo - retomou Clopin. - A boa vontade não põe uma cebola a mais na sopa. É preciso que você mostre que serve para alguma coisa, por isso você irá passar pela prova do manequim.
- Passo - disse Gringoire. - Farei qualquer coisa que lhe agrade.
O rei dos mendigos fez um sinal e uma forca foi trazida.
"Até onde querem ir?", pensou Gringoire, com alguma apreensão.
No mesmo instante, um barulho de sinos acabou com sua ansiedade. Os malfeitores traziam um boneco suspenso pelo pescoço por uma corda, uma espécie de espantalho, carregado de sinetas e sininhos.
Clopin, apontando uma velha escadinha vacilante colocada abaixo do manequim, disse para Gringoire:
- Suba.
- Vou quebrar o pescoço. Esta escada balança.
- Suba! - repetiu Clopin.
Gringoire subiu a escada e conseguiu, não sem algumas oscilações da cabeça e dos braços, encontrar o centro de gravidade.
- Agora - prosseguiu o rei -, gire seu pé direito em volta da perna esquerda e erga-se sobre a ponta do pé esquerdo.
- Sua Alteza deseja que eu quebre algum membro? Clopin, meneando a cabeça, reclamou:
- Silêncio, meu amigo, você fala muito! Em duas palavras, eis a prova: você vai se equilibrar sobre a ponta do pé, atingir o bolso do manequim, remexer dentro dele e tirar uma bolsa que está lá dentro. Se você conseguir fazer tudo isso sem que se escute o ruído de nenhuma sineta, tudo bem, será um dos nossos. Teremos apenas que cobri-lo de pancadas durante oito dias.
- Vou tomar cuidado - disse Gringoire. - E se faço soar as sinetas?
- Então, será enforcado. Compreende?
- Não compreendo de forma alguma - respondeu Gringoire. - Qual é a vantagem? Enforcado, num caso; coberto de pancadas, no outro.
- Vamos, apresse-se! - disse o rei, batendo o pé sobre o tonei, que ressoou como um grande tambor. - Roube o dinheiro do manequim e isso acaba logo. Aviso uma última vez: se eu ouvir o som de uma sineta sequer, a corda sai do pescoço do espantalho diretamente para o seu!
Gringoire tentou ainda ponderar:
- E se soprar um golpe do vento?
- Você será enforcado - foi a resposta.
Vendo que não havia subterfúgio possível, Gringoire ajeitou-se na ponta dos pés e estendeu o braço. No momento em que tocava o manequim, a escada, com o peso de seu corpo, se moveu. O poeta tentou, involuntariamente, apoiar-se sobre o boneco, mas perdeu o equilíbrio e caiu pesadamente sobre a terra, no meio do barulho de mil sinos.
- Maldição! - gritou, enquanto caía.
Por alguns instantes, ele permaneceu no chão como morto, com o rosto virado para a terra. Quando se levantou, o espantalho já havia sido retirado da corda para que ele pudesse tomar seu lugar. Forçaram-no, então, a subir a escada. Clopin se aproximou dele, passou a corda em volta de seu pescoço e disse, batendo-lhe no ombro:
- Adeus, amigo! Você não pode mais escapar agora...
No entanto, o rei dos mendigos parou, como se tivesse uma idéia súbita.
- Um momento! - disse. - Ia me esquecendo. Normalmente não enforcamos um homem antes de perguntar se uma mulher o aceita como marido. É uma lei cigana, que devemos respeitar.
Ninguém se apresentou e Clopin ia dar a ordem final para enforcar o poeta, quando gritos foram ouvidos:
- Esmeralda! Esmeralda!
Gringoire ficou arrepiado e virou na direção de onde vinha o clamor, enquanto a multidão dava passagem a uma figura deslumbrante. Era a cigana.
- Esmeralda! - disse Gringoire, estupefato pela maneira brusca com que esta palavra mágica reunia todas as lembranças do dia.
Ela aproximou-se com seu passo rápido. Djali a seguia. Gringoire, mais morto do que vivo, foi observado pela cigana em silêncio.
- Vai enforcar este homem? - disse a moça, seriamente.
- Sim, irmã - respondeu o rei -, a menos que você o aceite como marido.
- Eu aceito - disse ela, fazendo com o lábio inferior um belo beiço de desprezo.
Gringoire, neste momento, acreditou firmemente que apenas sonhava desde a manhã e que esta cena era a continuação do sonho. O laço foi desatado e o fizeram descer da escada. Logo, ele sentou-se, tamanha sua comoção. Alguém trouxe um jarro de barro, que a cigana lhe ofereceu.
- Jogue-o no chão - ela ordenou.
O jarro quebrou-se em quatro pedaços.
- Irmão - disse então o rei, pondo a mão na testa de ambos -, ela é sua mulher. Irmã, ele é seu marido. Por quatro anos. Vão.

O Corcunda de Notre-Dame, Victor Hugo - 4

CAPÍTULO 4
As boas almas

Dezesseis anos antes da época em que se passa esta história, no primeiro domingo após a Páscoa, uma pequena criatura foi depositada, após a missa, na igreja de Notre-Dame, no estrado de madeira próximo ao altar. Sobre este estrado era costume colocar crianças abandonadas. Quem quisesse, poderia pegá-las ali.
O pequeno ser vivo que lá repousava, naquela manhã do ano de 1467, parecia excitar, a um grau elevado, a curiosidade do grupo que se formara, composto em grande parte por mulheres velhas. Na primeira fila, havia quatro delas, que pelo capuz cinzento deixavam adivinhar sua ligação com alguma confraria devota. Corajosas, elas quebravam alegremente o voto de silêncio que tinham sido obrigadas a fazer:
- O que é aquilo, minha irmã? - dizia uma, observando a pequena criatura que resmungava e se retorcia sobre o estrado.
- Não sei nada sobre crianças - respondeu a outra -, mas deve ser pecado olhar para esta.
- É um monstro de abominação tal criatura!
- Minha irmã não vê que este pequeno monstro tem pelo menos quatro anos.
Na verdade, a criança não era recém-nascida. Tratava-se de um pequeno volume que se remexia bastante, enrolado num saco, somente com a cabeça, bastante disforme, para fora. Nela se via uma floresta de cabelos ruivos, um só olho, a boca e os dentes. O olho chorava, a boca gritava e os dentes pareciam apenas querer morder. O todo se debatia no saco e causava grande surpresa na multidão, que aumentava incessantemente em torno dele.
Durante alguns momentos, um jovem padre ouviu as palavras do grupo. Era uma figura severa: testa larga e olhar profundo. Ele afastou silenciosamente a aglomeração de pessoas, examinou a criança e estendeu a mão para ela.
- Eu irei adotar esta criança - disse o padre.
Depois, enrolou-a com um pedaço de sua batina e a levou. A assistência seguiu-o com olhos amedrontados. Logo, ele desapareceu através da porta vermelha que levava da igreja ao claustro. Passada a surpresa inicial, uma das mulheres exclamou:
- Eu havia mesmo dito, irmãs, que este jovem sacerdote, Cláudio Frollo, é um feiticeiro!
Cláudio Frollo não era um personagem vulgar. Pertencente à pequena nobreza, desde a infância, ele havia sido destinado pelos pais à carreira eclesiástica. Era uma criança triste, solene e séria, que estudava com ardor e aprendia rapidamente. Assim, dedicou-se à teologia, à medicina e às ciências.
Aos dezoito anos, a vida parecia ter um único objetivo para o jovem rapaz: os estudos. Foi por volta desta época que o verão excessivo de 1466 fez estourar a grande peste que matou mais de quarenta mil criaturas na cidade de
Paris. Correu um rumor na universidade de que a rua Tirechappe fora especialmente devastada pela doença. O jovem aluno deslocou-se, extremamente alarmado, à casa paterna. Quando entrou, o pai e a mãe já estavam mortos, enquanto o único irmão gritava, abandonado no berço. Era tudo o que havia restado de sua família. Cláudio pegou a criança nos braços e saiu, pensativo.
Tal catástrofe causou uma crise na vida do rapaz: órfão, herdeiro e chefe de família com dezenove anos. Piedoso, encheu-se de paixão e devoção para com o irmão.
O pequeno que caía abruptamente do céu em seus braços fez dele um novo homem. A criatura frágil o comoveu até o fundo das entranhas e, pensador agudo que era, Cláudio pôs-se a refletir sobre Jean com uma misericórdia infinita. Dedicou-lhe preocupação e cuidado, como se faz a algo muito delicado. Foi mais do que um irmão para a criança, foi uma mãe.
Cláudio contratou uma ama de leite para o menino e encarou a vida com muita seriedade. A lembrança do pequeno irmão tornou-se a finalidade de seus estudos, unindo-o mais do que nunca à vocação religiosa.
No momento em que retornava da missa, sua atenção foi chamada pelo grupo de velhas que murmuravam em torno do estrado onde eram depositadas as crianças enjeitadas. Foi então que se aproximou da pequena criatura infeliz. A aflição, a deformidade, o abandono, a recordação de seu jovem irmão, tudo aquilo falava a seu coração. Uma grande piedade o comoveu e ele carregou a criança.
Ao tirá-la do saco, achou-a bem disforme, de fato. O pobrezinho tinha uma verruga sobre o olho, a cabeça enterrada nos ombros, a coluna vertebral arqueada e as pernas torcidas, mas parecia ativo e, embora fosse impossível saber em que língua ele balbuciava, seu choro prenunciava alguma força e saúde. A compaixão de Cláudio cresceu com a feiúra do menino. Ele fez votos de criar a criança pelo amor de seu irmão. Ao batizá-la, deu-lhe o nome de Quasímodo tanto em homenagem ao primeiro dia depois da Páscoa, quanto por se tratar de uma criatura incompleta, um quase ser.
Em 1482, Quasímodo, já crescido, tornara-se o sineiro da catedral de Notre-Dame graças a seu pai adotivo, Cláudio Frollo, agora arcebispo.
Com o tempo, criou-se uma relação íntima que unia o tocador de sino à igreja. Quasímodo fez de Notre-Dame seu ninho, sua casa, seu universo. Não havia profundidade que ele não tivesse penetrado, altura que não tivesse escalado. Freqüentemente,, subia pela fachada, servindo-se apenas das asperezas da construção. Graças aos saltos e às escaladas, às brincadeiras no meio dos abismos da gigantesca catedral, tornara-se, de certa maneira, macaco e cabra montanhesa.
Foi com grande esforço e paciência que Cláudio Frollo conseguiu ensinar-lhe a falar. Mas havia uma fatalidade ligada à pobre criança. Sineiro de Notre-Dame há catorze anos, os sinos haviam perfurado seus tímpanos e ele tinha ficado surdo. Sua alma mergulhou numa noite profunda. A surdez tornou-o mudo, porque, para não ser motivo do riso alheio, ele decidiu resolutamente manter um silêncio que nunca quebrava, exceto quando estava só. E ele se tornou mau. Mau na verdade porque era selvagem. E selvagem porque era feio. Sua força, extraordinariamente desenvolvida, era uma causa a mais para a maldade.
Desde os primeiros passos entre os homens, ele se sentiu isolado. Ao crescer, encontrou apenas ódio em torno de si, então, olhava a humanidade com tristeza. Notre-Dame era suficiente. A presença desse ser extraordinário fazia circular em toda a catedral um sopro de vida. Quando ele estava ali, parecia que as estátuas das galerias respiravam e até se moviam.
Havia apenas uma criatura humana que Quasímodo excluía de sua maldade e de seu ódio para com os outros, de quem ele gostava tanto (mais, talvez) quanto sua catedral: Cláudio Frollo. Simples: Cláudio Frollo o havia adotado, criado, alimentado, protegido, e, por fim, o havia feito sineiro. O reconhecimento de Quasímodo era profundo, ardente, sem limites. Embora o rosto de seu pai adotivo fosse freqüentemente sombrio e sua palavra habitualmente curta, dura e imperiosa, nunca sua gratidão recuou. O arcebispo tinha em Quasímodo o escravo mais submisso. Quando ficou surdo, ele e dom Cláudio passaram a utilizar uma língua de sinais compreendida apenas por ambos. Desta maneira, o arcebispo era o único ser humano com quem Quasímodo se comunicava. No mundo, somente a catedral de Notre-Dame e dom Cláudio Frollo se relacionavam com ele.
Em 1482, Quasímodo tinha cerca de vinte anos e dom Cláudio, cerca de trinta e seis: um tinha crescido; o outro, envelhecido.
O arcebispo não abandonou a educação de seu jovem irmão, mas com o tempo frustrou-se com esta criança que havia sido tão doce. O pequeno Jean Frollo não cresceu na direção que dom Cláudio desejara. O irmão mais novo tomou o caminho da preguiça, da ignorância e do vício. Era muito bagunceiro, o que fazia franzir a sobrancelha de dom Cláudio, embora, quando fosse engraçado e espirituoso, proporcionasse ao irmão mais velho boas risadas.
Dom Cláudio, então, desencorajado em suas afeições humanas, tinha-se lançado com maior entrega aos braços da ciência, esta irmã que não ri diante de nossos narizes. Tornou-se assim cada vez mais sábio e, ao mesmo tempo, mais rígido como padre e mais triste como homem.
Tomado por uma paixão singular por Notre-Dame, passava horas intermináveis contemplando as esculturas do portal. Ele se acomodara num pequeno quarto numa das torres que dava para a Praça da Greve, bem ao lado do campanário. Ninguém entrava ali. Via-se freqüentemente, à noite, por uma pequena janela, uma claridade vermelha, intermitente, estranha - fruto de suas experiências com a alquimia. À sombra e àquela altura, isto tinha um efeito singular.
Assim o arcebispo, apesar da austeridade de sua vida, não caíra nas graças das boas almas, que não hesitavam em acusá-lo de bruxaria.
Observava-se, além disso, que seu horror para com os vagabundos parecia aumentar havia algum tempo. Ele solicitara ao bispo uma lei que proibisse expressamente aos ciganos dançar em torno da igreja.
Assim, ele e o sineiro eram bem pouco apreciados nas proximidades da catedral. Quando Cláudio e Quasímodo saíam juntos caminhando, o empregado seguindo o mestre, nas ruas estreitas e sombrias do quarteirão de Notre-Dame, sempre alguns palavrões e algumas gozações incomodavam a passagem dos dois. Às vezes, era um menino ousado que arriscava a pele e os ossos para ter o prazer indescritível de espetar um alfinete na Corcunda de Quasímodo. Às vezes, um grupo de velhas, reunido na sombra de um pórtico, resmungava em voz alta e lançava uma irônica saudação: "Aí vai um que tem a alma igual ao corpo do outro!". Ou era um bando de alunos que os cumprimentava com algumas vaias. Geralmente, o insulto passava despercebido pelo padre e pelo sineiro. Para escutar estas coisas graciosas, Quasímodo era surdo; e dom Cláudio, bastante distraído.

O Corcunda de Notre-Dame, Victor Hugo - 5


CAPÍTULO 5
A magistratura


É necessário que façamos agora a apresentação do senhor Roberto d'Estouteville, chefe da magistratura encarregado de garantir os melhores serviços da justiça ao povo de Paris.
Na manhã de 7 de janeiro de 1482, ele acordou de mau humor. De onde vinha tamanha indisposição não se poderia dizer. Era o dia seguinte a uma festa, dia de aborrecimento para todos e principalmente para o magistrado, que deveria ter sessão no Palácio Châtelet. Percebemos com freqüência que os juizes se arranjam em geral de modo que seu dia de audiência seja também seu dia de mau humor.
Contudo, os trabalhos haviam começado sem ele e os tenentes cumpriam seus afazeres, de acordo com o hábito. Desde as oito horas da manhã, algumas dezenas de burgueses, reunidos num canto escuro do auditório, assistiam com prazer ao espetáculo variado e alegre da justiça praticada pelo juiz-ouvidor do Palácio Châtelet, senhor Florian Bardebienne, tenente do magistrado.
Imagine-se em uma mesa, entre duas pilhas de processos, o ouvidor apoiado sobre os cotovelos, o pé sobre a toga de tecido marrom, o rosto de lobo em pele de cordeiro, piscando um olho e carregando com majestade a gordura das bochechas que caíam sob seu queixo.
Pequeno defeito para um ouvidor, o senhor Florian era surdo, nem por isso julgava-se menos capaz. Diante dele, acusados sucediam acusados e todos recebiam multas por delitos de pouca importância.
De repente, ouviu-se do lado dos policiais um grande barulho.
- Aí estão os sargentos! - alguém gritou. - Quem estarão trazendo?
- Certamente a presa mais gorda. Um javali, talvez!
- Espere! Espere! É o príncipe de ontem, o Papa dos Loucos, o sineiro Quasímodo!
O Corcunda surgiu, então, preso por correias e cercado por um pelotão de sargentos, observados pelo comandante em pessoa. Não havia nada em Quasímodo que pudesse justificar o uso de tal força. Ele estava sério, silencioso e tranqüilo. Apenas seu único olho lançava, de vez em quando, um olhar tão patético sobre os laços que o prendiam que as mulheres manifestavam-se apenas por risos.
Apesar disso, o senhor Florian folheou cuidadosamente o processo da queixa elaborada contra Quasímodo, que lhe foi apresentado pelo escrevente, e, tendo dado uma rápida olhada nele, pareceu refletir por um momento. Graças ao cuidado que sempre tomava no momento de conduzir um interrogatório, ele sabia de antemão o nome, as qualidades e o delito do réu, preparava réplicas previstas para as respostas previstas e conseguia escapar de todas as sinuosidades do interrogatório, sem deixar que percebessem em demasia sua surdez.
Tendo ruminado bem o caso de Quasímodo, ele inclinou a cabeça para trás e fechou os olhos até a metade, a fim de adquirir um ar majestoso e imparcial, de modo que fosse nesse momento surdo e cego.
- Seu nome?
Mas há um caso que não tinha sido previsto: um surdo interrogando outro. Quasímodo, sem ser informado da pergunta a ele dirigida, continuou a olhar o juiz fixamente e não respondeu. O juiz, que não fora informado da surdez do acusado, pensou que ele houvesse respondido, como faziam em geral todos os acusados, e prosseguiu:
- Está bem. Sua idade?
Quasímodo não respondeu a mais esta pergunta e o juiz novamente supôs a resposta:
- Agora, sua profissão?
Sempre o mesmo silêncio. O público, no entanto, começou a cochichar.
- É suficiente - retomou o ouvidor quando achou que o acusado tivesse dado a terceira resposta. - É acusado em nossa presença, primeiramente, de perturbação noturna; em segundo lugar, de violência contra a pessoa de uma jovem cigana; em terceiro, de rebelião contra as armas do rei. Faça sua defesa sobre todos esses pontos. Escrevente, tudo o que o acusado disse até agora foi escrito?
Quando esta pergunta inoportuna foi feita, uma gargalhada geral ecoou tão contagiosa que os dois surdos a perceberam. Quasímodo virou-se, levantando a Corcunda com desdém, enquanto o senhor Florian, surpreendido como ele e supondo que o riso dos espectadores tivesse sido provocado por alguma réplica irreverente do acusado, gritou em sua direção com indignação:
- Sua resposta, engraçadinho, mereceria a forca. O senhor sabe com quem está falando?
Não há nenhuma razão pela qual um surdo que fala a outro surdo se interrompa. O senhor Florian ia se lançar à alta eloqüência, quando a porta dos fundos se abriu de repente, dando passagem ao chefe da magistratura. À sua entrada, o ouvidor parou de repente.
- Senhor - disse Florian Bardebienne a Roberto d'Estouteville, que acabara de entrar -, peço a penalidade que lhe agradar contra o acusado presente, por violação grave da lei.
Depois disso, o ouvidor sentou-se, enxugando o suor que lhe escorria da testa e que molhava as folhas do processo que tinha diante de si. O senhor d'Estouteville franziu as sobrancelhas e chamou a atenção de Quasímodo com um gesto tão imperioso que este compreendeu algo. Com severidade, o magistrado dirigiu-lhe a palavra:
- O que você fez para estar aqui, tratante?
O infeliz, supondo que o magistrado perguntava seu nome, quebrou o silêncio que mantinha habitualmente e respondeu com uma voz rouca e gutural:
- Quasímodo.
A resposta encaixava-se tão mal com a pergunta que as gargalhadas recomeçaram. O senhor Roberto gritou, vermelho de cólera:
- Está zombando de mim?
- Sineiro na catedral de Notre-Dame - respondeu Quasímodo, achando que deveria dizer ao juiz sua profissão.
- Sineiro! - repetiu o juiz-mor, que havia acordado naquela manhã bem mal-humorado, de modo que sua fúria não tinha necessidade de ser provocada por tão estranhas respostas. - Sineiro! Farei com que lhe apliquem muitos golpes de varas nas costas, está escutando?
- Se é minha idade que quer saber - disse Quasímodo -, farei vinte anos no dia de São Martin.
Aquilo foi demais e Roberto d'Estouteville não conseguiu se conter:
- Você está zombando da corte, miserável! Sargentos, levem este palhaço ao pelourinho da Praça da Greve e apliquem nele uma surra durante uma hora. Ele irá me pagar!
O escrevente em poucos minutos redigiu o veredicto, contudo, no momento em que o senhor Florian Bardebienne lia a sentença para assiná-la, o escrivão sentiu-se comovido e teve piedade do pobre condenado. Assim, na esperança de obter alguma diminuição na pena, aproximou-se tanto quanto possível da orelha do ouvidor e disse-lhe, apontando Quasímodo:
- Este homem é surdo.
Esperava ele que tal coincidência de enfermidade despertasse o interesse do senhor Florian a favor do condenado. Mas, em primeiro lugar, já observamos que o ouvidor não se incomodava com o fato de as pessoas perceberem sua surdez. Além disso, ele era tão surdo que não compreendeu uma só palavra que o escrevente lhe disse. No entanto, quis dar a impressão de entender e respondeu:
- Ah, então é diferente. Eu não sabia disso. Neste caso, que fique uma hora a mais no pelourinho!
E assinou a sentença assim modificada.

O Corcunda de Notre-Dame, Victor Hugo - 6


CAPÍTULO 6
O buraco dos ratos


Na Praça da Greve, o espetáculo não é menos interessante. Às dez horas da manhã, tudo lembra o dia seguinte da festa. A calçada está coberta de restos, fitas, panos, plumas de penachos, gotas de cera das tochas, migalhas do banquete público. Os vendedores de cidra e cerveja rolam suas barricas. Alguns transeuntes ocupados vão e vêm. Os mercadores conversam e se chamam uns aos outros diante de suas lojas. Todos tentam falar melhor e rir mais. E, no entanto, quatro sargentos a cavalo que acabam de se postar nos quatro lados do pelourinho já concentram em torno de si a atenção geral.
Se o leitor dirigir agora seu olhar para a casa de Tour-Roland, que fica na esquina do cais, poderá observar, no canto da fachada, uma estreita janela fechada por duas barras de ferro em cruz, única abertura que deixa chegar um pouco de ar e de luz do dia a uma pequena cela sem porta no andar térreo.
Tal cela era a mais famosa em Paris há mais de três séculos, desde que madame Rolande de Ia Tour-Roland, de luto por seu pai morto numa cruzada, mandou escavá-la na muralha da própria casa para ali se encerrar para sempre, mantendo de seu palácio apenas este único local cuja porta era murada. Somente uma fresta permanecia aberta, tanto no inverno como no verão. A senhorita, que doara o resto de seus bens aos pobres e a Deus, havia esperado a morte vinte anos neste túmulo, rezando dia e noite pela alma do pai, dormindo nas cinzas, sem ter nem mesmo uma pedra como travesseiro, vestida com um saco preto e vivendo apenas daquilo que a piedade dos transeuntes depositava sobre o parapeito da pequena janela. Quando morreu, deixou a cela para as mulheres que queriam se enterrar vivas num momento de grande dor ou por uma grande penitência.
A Tour-Roland nunca deixou de aceitar mulheres reclusas. Muitas delas a habitavam até a morte e o povo de Paris se habituou a chamar o local de "o buraco dos ratos". Na época em que se passa esta história, a cela da Tour-Roland estava ocupada justamente por aquela mulher que interrompeu a apresentação da cigana Esmeralda, mandando-a embora.
A história desta reclusa será ouvida por meio da conversa de três boas comadres que se dirigiam precisamente para Iá, subindo do Palácio Châtelet para a Praça da Greve, ao longo do rio.
Duas destas mulheres vestiam-se como boas burguesas de Paris, a outra tinha um ar mais provinciano. Ela segurava pela mão um menino grande que, por sua vez, carregava um bolo.
A criança se deixava arrastar e tropeçava a todo instante, talvez porque olhasse mais para o bolo do que para a calçada, e algum motivo sério o impedia de mordê-lo, já que ele se satisfazia em observá-lo com carinho. As três senhoritas, que se chamavam Mahiette, Oudarde e Gervaise, falavam todas ao mesmo tempo.
- Precisamos nos apressar, senhorita Mahiette - dizia a mais jovem das três para aquela com ar provinciano. - Tenho muito medo de chegarmos atrasadas. Disseram no Palácio Châtelet que ele seria levado imediatamente ao pelourinho.
- Ora bolas, o que você está dizendo, senhorita Oudarde? - continuou a outra parisiense. - Ele ficará duas horas no pelourinho. Temos tempo.
- Veja aquele agrupamento no final da ponte! Essas pessoas estão observando algo. - disse Mahiette.
- Na verdade - completou Gervaise -, escuto um tamborim. Acho que é a pequena Esmeralda que faz seu espetáculo com sua cabra. Vamos rápido, Mahiette, aperte o passo e arraste seu menino. Vocês vieram até aqui para conhecer as curiosidades de Paris. Ontem viram os flamengos, hoje devem ver a egípcia.
- Egípcia! - disse Mahiette, mudando abruptamente de direção e apertando com força o braço de seu filho. - Deus me guarde! Ela roubaria meu filho. Venha, Eustáquio.
Assustada, ela se pôs a correr ao longo do cais em direção à Praça da Greve, até deixar a ponte para trás. Contudo, a criança que arrastava caiu de joelhos e ela parou exausta. Logo, Oudarde e Gervaise juntaram-se a ela.
- Que história é essa de a egípcia roubar sua criança? Está aí uma fantasia bastante curiosa! - disse Gervaise.
Mahiette balançou a cabeça com um ar pensativo.
- O curioso - observou Oudarde - é que a enclausurada tem a mesma idéia a respeito da egípcia.
- Quem é essa enclausurada? - indagou Mahiette.
- É a irmã Gúdula - disse Oudarde. - A velha do buraco dos ratos.
- Como? - perguntou Mahiette. - Esta pobre mulher para quem estamos levamos o bolo?
Oudarde fez um sinal de cabeça afirmativo.
- Precisamente. Você vai vê-la daqui a pouco, através de sua pequena janela sobre a Praça da Greve. Ela pensa o mesmo que você destes vagabundos do Egito que tocam tamborim e lêem a sorte. Não se sabe de onde vem este horror às egípcias. E você, Mahiette, por que então foge assim, sem nem mesmo vê-la?
- Ah! - respondeu a outra, segurando entre as mãos a cabeça do filho. - Não quero que aconteça comigo o que aconteceu com Paquette Ia Chantefleurie.
- Aí está uma história que você vai nos contar, minha boa Mahiette - disse Gervaise segurando-lhe o braço.
- De boa vontade - respondeu Mahiette.
E ela contou a história de uma pobre mãe, chamada Paquette Ia Chantefleurie, de quem os egípcios roubaram a bela filha. Eles foram vistos nas proximidades da casa: eram morenos, tinham os cabelos muito crespos e brincos de prata em forma de anel nas orelhas. As mulheres possuíam o rosto ainda mais negro e os cabelos amarrados em rabos de cavalo. Chantefleurie mostrou-lhes a criança e pediu que eles lessem a sorte dela.
- Ela será rainha! - declarou uma egípcia.
E a mãe voltou para casa, muito orgulhosa de levar consigo uma futura rainha. No dia seguinte, aproveitando-se de um momento em que a criança dormia, ela correu a contar à vizinha que sua filha Agnes um dia seria servida à mesa por um rei. Quando retornou, encontrou a porta aberta e correu para procurar a filha na cama, mas a criança não estava mais ali. Não havia nenhum sinal da menina, a não ser um de seus belos sapatinhos. Desesperada, a pobre mãe saiu de casa, batendo a cabeça nas paredes e gritando:
- Minha menina! Quem roubou minha filha?
A rua estava deserta e ninguém pôde dizer nada. Paquette percorreu a cidade durante o dia inteiro, louca, perdida, farejando as portas e as janelas como um animal selvagem que perdeu o filhote. Sem fôlego e descabelada, parava os transeuntes e gritava:
- Minha criança, minha linda filhinha. Serei escrava daquele que devolver minha menina!
Durante sua ausência, uma vizinha viu duas egípcias entrarem escondidas nos seus aposentos com um pacote nos braços e depois saírem apressadas, segurando outro embrulho. À noite, quando retornou, a mãe ouviu um choro de criança e sorriu. Subiu as escadas como se tivesse asas e entrou. Uma coisa terrível! Em vez da bela Agnes, tão doce e tão rosada, uma espécie de pequeno monstro, medonho, cocho, zarolho e disforme, berrava assustado. Paquette fechou os olhos com horror e pensou:
"Teriam as bruxas transformado minha criança neste animal pavoroso?"
Houve quem se apressasse a levar embora a criança. O pequeno a teria deixado louca, pois era o filho monstruoso de alguma egípcia. Parecia ter cerca de quatro anos e falava uma língua que não era humana.
Paquette pegou o pequeno sapato da filha - tudo o que restara de quem mais amara na vida - levantou-se de repente e se pôs a correr, gritando:
- Ao acampamento dos egípcios! Ao acampamento dos egípcios!
Mas os ciganos haviam partido e ela não pôde persegui-los. No dia seguinte, a duas milhas de Iá, num brejo, foram encontrados os restos de uma grande fogueira e algumas roupas que pertenciam à criança.
Quando Paquette soube destas coisas horríveis, não chorou. Apenas moveu os lábios, como para falar, mas não pôde. Na manhã seguinte, seus cabelos estavam grisalhos e, dois dias depois, ela havia desaparecido.
- Que história pavorosa - disse Oudarde. - Não me surpreende mais o medo tão grande que você tem dos egípcios.
Mahiette caminhava silenciosamente.
- E alguém sabe o que aconteceu com Paquette? - perguntou Gervaise.
- Nunca se soube - acrescentou Mahiette, após uma pausa. - No entanto, há quem diga tê-la visto a caminho de Paris, andando com os pés descalços. Outros afirmam que ela se afogou.
- E o sapatinho? - perguntou Gervaise.
- Desapareceu com a mãe. - respondeu Mahiette.
- E o monstro? - disse, de repente, Oudarde.
- O cardeal o abençoou e o enviou para Paris, para ser exposto na catedral de Notre-Dame.
- E o que aconteceu com ele em Paris?
- Não sei - respondeu Mahiette.
Conversando assim, as três burguesas chegaram à Praça da Greve. Distraídas, passaram na frente da Tour-Roland sem parar e se dirigiram para o pelourinho ao redor do qual a multidão aumentava a cada momento. Provavelmente teriam esquecido o buraco dos ratos se o robusto Eustáquio não lhes recordasse abruptamente:
- Mãe, posso comer o bolo?
Tal pergunta despertou a atenção de Mahiette, que exclamou:
- Esquecemos da enclausurada! Levem-me ao buraco dos ratos para que eu possa dar a ela o bolo.
- Imediatamente! - disse Oudarde. - É uma caridade. As três mulheres retornaram e, chegando perto da Tour-Roland, Oudarde disse:
- Vou espiar pela janela. Ela me conhece um pouco e eu as avisarei quando puderem vir.
Oudarde dirigiu-se à pequena abertura da cela e no momento em que seu olhar penetrou no interior do quarto uma profunda piedade varreu-lhe o rosto. Mahiette aproximou-se em silêncio, comovida, e agora as três mulheres, porque Gervaise havia se reunido a elas, olhavam pela fresta. Suas cabeças interceptavam a fraca luz do calabouço, sem que a miserável enclausurada parecesse prestar atenção a elas.
- Não a perturbemos - disse Oudarde, solícita. Mahiette observou com ansiedade sempre crescente aquela cabeça magra, desvanecida, descabelada e seus olhos encheram-se de lágrimas.
- Ela é bem estranha - murmurou. - Como se chama? -perguntou a Oudarde.
- Nós a chamamos de irmã Gúdula.
- Já eu - continuou Mahiette - chamo-a de Paquette Ia Chantefleurie.
Então, fez um sinal para que Oudarde e Gervaise olhassem atentamente o interior da cela e identificassem o pequeno objeto que consumia toda a atenção da enclausurada. Um pequeno sapato de cetim rosa, bordado em ouro e prata, levou as três mulheres a chorarem de emoção.
Nada disso distraiu a reclusa. As mãos continuavam juntas, os lábios mudos e os olhos fixos. As três mulheres ainda não haviam proferido uma só palavra, nem mesmo em voz baixa, e, por fim, Gervaise, a mais curiosa das três, tentou fazer a enclausurada falar.
- Irmã Gúdula!
Ela repetiu o chamado, aumentando a voz a cada vez, mas a enclausurada não se moveu. Nem uma palavra, um olhar ou um suspiro. Oudarde, por sua vez, chamou-a com uma voz mais suave. O mesmo silêncio, a mesma imobilidade.
- Talvez esteja surda - disse Oudarde, suspirando.
- Talvez morta - retrucou Mahiette.
- Mãe, quero ver! - disse Eustáquio neste momento.
A voz da criança - clara, fresca, sonora - despertou a enclausurada. Um longo tremor percorreu-lhe o corpo, seus dentes rangeram e ela levantou um pouco a cabeça, exclamando:
- Que frio!
- Pobre mulher - lastimou Oudarde -, quer um pouco de fogo para se aquecer?
Paquette, balançando a cabeça em sinal de recusa, olhou Oudarde fixamente e disse:
- Água. Oudarde ponderou:
- Coma este bolo que assamos para você. Ela afastou o bolo e disse:
- Pão preto.
De repente, seus olhos brilharam e, sentando sobre os joelhos, ela estendeu a mão branca e magra para a criança que a observava surpresa:
- Levem este menino daqui! A cigana vai passar! Maldita seja a filha do Egito!
Logo após, ela caiu com a face contra o solo, golpeando com o rosto o ladrilho como se uma pedra batesse contra outra.
As três mulheres pensaram que ela havia morrido, mas a reclusa se arrastou até o canto onde estava o pequeno sapato. As amigas não ousaram olhar, somente ouviram mil beijos e mil suspiros misturados a gritos cortantes.