O Corcunda de Notre-Dame, Victor Hugo - 2


CAPÍTULO 2
Esmeralda


Quando Gringoire saiu do Palácio, as ruas já estavam às escuras e a noite o agradou. Ele ansiava caminhar para meditar à vontade sobre o fracasso da representação teatral. Além disso, não ousava voltar para casa, pois contava com o pagamento que receberia pela peça para saldar os seis meses de aluguel que devia ao proprietário do imóvel. Depois de refletir por um momento, lembrou-se de ter visto na semana anterior, na porta de um conselheiro do Parlamento, um banco de pedra. Na ocasião, ele disse para si mesmo que aquela pedra seria, oportunamente, um excelente travesseiro para um mendigo ou para um poeta.
Ele agradeceu à Providência por lhe ter enviado esta boa idéia, mas, como se preparava para cruzar a Praça do Palácio, viu a procissão do Papa dos Loucos atravessar seu caminho novamente, com altos brados e um grande clarão de tochas. Esta visão reavivou as feridas de seu amor próprio e ele partiu. No amargor de sua desventura dramática, tudo que lembrasse a festa do dia o exasperava e fazia sangrar sua ferida.
Gringoire quis atravessar a ponte Sant-Michel, onde crianças corriam aqui e ali com rojões. Mais adiante, a multidão admirava bandeiras sobre as quais o pintor Jehan Fourbault havia desenhado o retrato do rei, do delfim e de outros personagens importantes. "Feliz pintor Jehan Fourbault!", pensou Gringoire com um grande suspiro e deu as costas às bandeirolas.
Ele encontrou uma rua diante de si e a achou tão escura e tão abandonada que acreditou que ali poderia escapar de todas as influências da festa. Caminhou por ela e chegou à margem do rio Sena. Depois de andar ao longo do grande muro dos jardins naquela praia não calçada onde a lama atingia o tornozelo, ele chegou a um ponto de onde observou durante algum tempo uma pequena ilha.
A ilhota na sombra parecia uma massa negra e nela percebia-se o reflexo de uma pequena luz que emanava da cabana do barqueiro solitário que lá se abrigava durante a noite.
"Feliz barqueiro!", pensou Gringoire, "Você não busca a glória. De que lhe importam os reis que se casam e as duquesas da Borgonha? Você não conhece outras margaridas além das que planta em seu gramado. Já eu, poeta, sou vaiado e tremo de frio. A sola de meus sapatos é tão transparente que poderia servir de vidro para sua lanterna. Obrigado! Sua cabana descansa minha vista e me faz esquecer de Paris!"
O poeta despertou deste devaneio por um grande fogo de artifício duplo que partiu repentinamente da cabana abençoada. Era o barqueiro que, à sua maneira, participava das festividades do dia, soltando um rojão.
O rojão arrepiou a pele de Gringoire.
- Maldita festa - gritou ele - que irá me perseguir por toda parte! Ah, meu Deus! Até nesta pequena ilha quase deserta!
Em seguida, ele observou o rio Sena a seus pés e uma terrível sensação invadiu-lhe o corpo:
- Com que boa vontade eu me afogaria se a água não estivesse tão fria!
Então, surgiu nele uma resolução desesperada. Já que não podia escapar do Papa dos Loucos, das bandeiras do pintor Jehan Fourbault e dos fogos de artifício, que mergulhasse bravamente no próprio coração da festa e fosse para a Praça da Greve!
"Pode ser", pensou, "que eu consiga uma centelha de fogueira para me aquecer e até mesmo jante por lá."
Quando Pierre Gringoire chegou à Praça da Greve, congelava de frio. Ele havia evitado a multidão e as bandeirolas de Jehan Fourbault, mas as rodas de todos os moinhos pelos quais passou o haviam molhado, encharcando sua blusa.
Ele apressou-se em se aproximar da fogueira que queimava magnificamente no meio da praça, mas uma multidão considerável estava à sua volta. Examinando mais de perto, percebeu que o círculo era grande demais para que todos desejassem se aquecer no fogo e que este grupo de espectadores não fora atraído unicamente pela beleza dos galhos que queimavam.
Num vasto espaço deixado livre entre a multidão e a fogueira, uma moça dançava. Ela não era grande, mas parecia, de tanto que sua pequena figura se lançava aos movimentos. Era morena, mas percebia-se que durante o dia sua pele devia ter o reflexo dourado das mulheres espanholas ou italianas. Seus pés pequenos dançavam à vontade nos sapatos graciosos. Ela girava e se contorcia sobre um velho tapete persa e, cada vez que a face radiante passava diante de alguém, seus grandes olhos negros atiravam um raio.
Em torno dela, concentravam-se olhares fixos e bocas entreabertas. Enquanto ela dançava assim ao som do tambor, os braços se elevavam acima da cabeça pequena, frágil e viva como uma vespa, com seu corpete de ouro, seu vestido colorido, seus cabelos negros, seus olhos de chamas. Com efeito, ela era uma cigana!
"Na verdade", pensou Gringoire, "é uma deusa".
Neste momento, uma das tranças dos cabelos da "divindade" desprendeu-se e um pedaço de cobre amarelo rolou por terra.
- Oh, não! - ele exclamou. - É uma cigana!
Toda ilusão havia desaparecido, pois ela de fato era uma cigana.
Entre os rostos que o fogo tingia de escarlate, havia um que parecia absorvido pela contemplação da dançarina mais que todos os outros. Era severo, calmo e sinistro. Este homem, cujos trajes estavam escondidos pela multidão que o cercava, não parecia ter mais que trinta e cinco anos e, no entanto, era careca. As têmporas mal sustentavam alguns raros tufos de cabelo, já brancos. A testa larga e alta começava a se encher de rugas, mas nos olhos fundos brilhava uma juventude extraordinária. Ele os mantinha sem cessar presos à cigana e, enquanto a moça de dezesseis anos dançava e esvoaçava para o prazer de todos, seus devaneios tornavam-se cada vez mais sombrios.
A jovem, sem fôlego, enfim parou e o povo a aplaudiu.
- Djali - disse a cigana.
Gringoire viu, então, chegar uma pequena cabra branca, alegre e lustrosa, com chifres dourados, pés dourados e uma coleira dourada.
- Djali - disse a dançarina -, é sua vez. Sentando-se, ela apresentou graciosamente seu tambor à cabra.
- Djali - continuou -, em que mês nós estamos?
A cabra levantou a pata dianteira e bateu uma única vez no tambor. Realmente, era o primeiro mês do ano e a multidão aplaudiu.
- Djali - prosseguiu a cigana -, em que dia do mês estamos?
O animal levantou o pé dourado e bateu seis vezes no tambor.
- Djali - continuou a cigana, sempre com um novo truque ao bater o tambor -, que horas são?
A cabra bateu sete vezes. No mesmo momento, o relógio da Casa dos Pilares soou sete horas e a multidão maravilhou-se.
- Isto é bruxaria - disse a voz sinistra do homem careca que não tirava os olhos da cigana, no meio da multidão.
A moça recuou e se virou.
- Sacrilégio! Profanação! - recomeçou a voz. A cigana se virou mais uma vez.
- Ah, só podia ser este homem repulsivo!
Em seguida, esticando o lábio inferior para além do lábio superior, ela fez um pequeno beiço com o qual parecia estar familiarizada, deu uma pirueta sobre o calcanhar e se pôs a recolher em seu tambor as doações da multidão.
De repente, passou diante de Gringoire. Este colocou a mão tão irrefletidamente no bolso que ela parou.
- Droga! - disse o poeta, encontrando no fundo do bolso a realidade, ou seja, o vazio.
No entanto, a moça permaneceu ali, estendendo-lhe o tambor e esperando. Gringoire suava, e, felizmente, um acontecimento inesperado veio em seu socorro.
- Vá embora, gafanhoto do Egito! - disse uma voz ácida que partiu do canto mais escuro da praça.
A moça virou-se, amedrontada. Não era mais a voz do homem e, sim, uma voz feminina, que repetiu:
- Suma daqui, gafanhoto do Egito!
- É a enclausurada da Tour-Roland! - gritaram algumas crianças, em tom de gozação. - Por que será que ela está nervosa? Será que ainda não jantou?
Gringoire aproveitou-se do problema da dançarina para desaparecer. O clamor das crianças lembrou-o de que ele também não havia jantado. Coisa inoportuna é dormir sem comer. Menos agradável ainda é não jantar e não saber onde dormir. O poeta estava nesta situação: sem dinheiro, sem pão, sem lar.
Pensava ele sobre esta triste condição, quando um canto cheio de doçura, arrancou-o de sua melancolia: era a jovem egípcia novamente, que desta vez cantava. A voz era como sua beleza: fascinante, pura, etérea.
As palavras que ela cantava eram de uma língua desconhecida por Gringoire e ele as escutava encantado. Depois de várias horas, este era o primeiro momento em que ele não sofria, pena que tenha durado tão pouco! A mesma voz de mulher que havia interrompido a dança da cigana também veio interromper-lhe o canto.
- Quer se calar, cigarra do mal! - ela gritou novamente do canto escuro da praça.
A pobre "cigarra" parou de súbito e Gringoire tapou os ouvidos.
- Ah! - disse ele. - Maldita serra sem corte que interrompe este canto doce.
Os outros espectadores murmuraram:
- Cale-se, velha estúpida!
E ela poderia ter se arrependido das agressões contra a cigana, se eles não se distraíssem nesse exato momento pela passagem do Papa dos Loucos, que, após ter percorrido muitas ruas e cruzamentos, desembocava na Praça da Greve com todas as suas tochas.
A procissão que partiu do Palácio organizou-se ao longo do caminho, recrutando todos os ladrões, vadios e mendigos disponíveis de Paris - o que lhe dava um aspecto bizarro.
No centro da multidão, os grãos-oficiais da confraria dos Loucos carregavam nos ombros uma cadeira cheia de velas no meio da qual resplandecia sentado, com todos os aparatos, o novo Papa dos Loucos: o tocador dos sinos de Notre-Dame, Quasímodo, o Corcunda.
É difícil dar uma idéia do orgulho que Quasímodo sentia. Era a primeira alegria de amor-próprio que ele jamais havia experimentado. Conhecia o sineiro até então apenas o desdém por sua condição, a aversão por sua pessoa. Como era totalmente surdo, saboreava as aclamações da multidão que ele odiava. Que importava se seus adoradores fossem um bando de loucos, ladrões e mendigos! Era ainda uma multidão e ele, o soberano. A patética figura levava a sério todos os aplausos irônicos e todas as deferências ridículas que se misturavam a um pouco de medo, porque o Corcunda era robusto.
Portanto, foi com certa apreensão que todos viram de repente um homem lançar-se no meio da multidão e arrancar das mãos de Quasímodo o bastão de madeira dourada, símbolo de seu delirante papado.
Este homem, vestido com o hábito eclesiástico, era o sujeito calvo que assistira antes à dança da cigana. No momento em que saiu da multidão, Gringoire, que não o havia visto até então, reconheceu-o.
- Espere! - disse, com um grito de surpresa. - É dom Cláudio Frollo, o arcebispo. O que ele quer desse horrível caolho? Vai acabar devorado.
Um grito de terror se elevou. Quasímodo pulou da cadeira e as mulheres viraram o rosto para não vê-lo fazer em pedaços o arcebispo.
Mas ele saltou até o padre e se pôs de joelhos. O religioso arrancou-lhe a tiara, quebrou o bastão e rasgou suas vestes de papa. Quasímodo, ajoelhado, abaixou a cabeça. Em seguida, estabeleceu-se entre eles um estranho diálogo de sinais e gestos, porque nem um nem outro falava: o padre, de pé, irritado, ameaçador, categórico; Quasímodo, curvado, humilde, suplicante. No entanto, o Corcunda poderia esmagá-lo com as mãos.
Enfim, o arcebispo, sacudindo o ombro de Quasímodo, fez um sinal para que ele se levantasse e o seguisse. A Confraria dos Loucos, passado o susto, quis defender o papa destronado, mas Quasímodo se colocou na frente do padre e encarou os atacantes com o ranger de dentes de um tigre zangado.
O padre assumiu um ar sombrio, fez um sinal para Quasímodo e se retirou em silêncio. O Corcunda caminhava diante dele, afastando a multidão à sua passagem. Quando eles acabaram de atravessar a praça, o bando de curiosos e de vadios quis acompanhá-los, porém Quasímodo se colocou na retaguarda e seguiu o mestre, urrando como uma fera selvagem.
Os dois entraram em uma rua estreita e escura, onde ninguém ousaria se arriscar.
- Veja só que maravilha! - disse Gringoire. - Mas onde irei jantar?