O Corcunda de Notre-Dame, Victor Hugo - 5


CAPÍTULO 5
A magistratura


É necessário que façamos agora a apresentação do senhor Roberto d'Estouteville, chefe da magistratura encarregado de garantir os melhores serviços da justiça ao povo de Paris.
Na manhã de 7 de janeiro de 1482, ele acordou de mau humor. De onde vinha tamanha indisposição não se poderia dizer. Era o dia seguinte a uma festa, dia de aborrecimento para todos e principalmente para o magistrado, que deveria ter sessão no Palácio Châtelet. Percebemos com freqüência que os juizes se arranjam em geral de modo que seu dia de audiência seja também seu dia de mau humor.
Contudo, os trabalhos haviam começado sem ele e os tenentes cumpriam seus afazeres, de acordo com o hábito. Desde as oito horas da manhã, algumas dezenas de burgueses, reunidos num canto escuro do auditório, assistiam com prazer ao espetáculo variado e alegre da justiça praticada pelo juiz-ouvidor do Palácio Châtelet, senhor Florian Bardebienne, tenente do magistrado.
Imagine-se em uma mesa, entre duas pilhas de processos, o ouvidor apoiado sobre os cotovelos, o pé sobre a toga de tecido marrom, o rosto de lobo em pele de cordeiro, piscando um olho e carregando com majestade a gordura das bochechas que caíam sob seu queixo.
Pequeno defeito para um ouvidor, o senhor Florian era surdo, nem por isso julgava-se menos capaz. Diante dele, acusados sucediam acusados e todos recebiam multas por delitos de pouca importância.
De repente, ouviu-se do lado dos policiais um grande barulho.
- Aí estão os sargentos! - alguém gritou. - Quem estarão trazendo?
- Certamente a presa mais gorda. Um javali, talvez!
- Espere! Espere! É o príncipe de ontem, o Papa dos Loucos, o sineiro Quasímodo!
O Corcunda surgiu, então, preso por correias e cercado por um pelotão de sargentos, observados pelo comandante em pessoa. Não havia nada em Quasímodo que pudesse justificar o uso de tal força. Ele estava sério, silencioso e tranqüilo. Apenas seu único olho lançava, de vez em quando, um olhar tão patético sobre os laços que o prendiam que as mulheres manifestavam-se apenas por risos.
Apesar disso, o senhor Florian folheou cuidadosamente o processo da queixa elaborada contra Quasímodo, que lhe foi apresentado pelo escrevente, e, tendo dado uma rápida olhada nele, pareceu refletir por um momento. Graças ao cuidado que sempre tomava no momento de conduzir um interrogatório, ele sabia de antemão o nome, as qualidades e o delito do réu, preparava réplicas previstas para as respostas previstas e conseguia escapar de todas as sinuosidades do interrogatório, sem deixar que percebessem em demasia sua surdez.
Tendo ruminado bem o caso de Quasímodo, ele inclinou a cabeça para trás e fechou os olhos até a metade, a fim de adquirir um ar majestoso e imparcial, de modo que fosse nesse momento surdo e cego.
- Seu nome?
Mas há um caso que não tinha sido previsto: um surdo interrogando outro. Quasímodo, sem ser informado da pergunta a ele dirigida, continuou a olhar o juiz fixamente e não respondeu. O juiz, que não fora informado da surdez do acusado, pensou que ele houvesse respondido, como faziam em geral todos os acusados, e prosseguiu:
- Está bem. Sua idade?
Quasímodo não respondeu a mais esta pergunta e o juiz novamente supôs a resposta:
- Agora, sua profissão?
Sempre o mesmo silêncio. O público, no entanto, começou a cochichar.
- É suficiente - retomou o ouvidor quando achou que o acusado tivesse dado a terceira resposta. - É acusado em nossa presença, primeiramente, de perturbação noturna; em segundo lugar, de violência contra a pessoa de uma jovem cigana; em terceiro, de rebelião contra as armas do rei. Faça sua defesa sobre todos esses pontos. Escrevente, tudo o que o acusado disse até agora foi escrito?
Quando esta pergunta inoportuna foi feita, uma gargalhada geral ecoou tão contagiosa que os dois surdos a perceberam. Quasímodo virou-se, levantando a Corcunda com desdém, enquanto o senhor Florian, surpreendido como ele e supondo que o riso dos espectadores tivesse sido provocado por alguma réplica irreverente do acusado, gritou em sua direção com indignação:
- Sua resposta, engraçadinho, mereceria a forca. O senhor sabe com quem está falando?
Não há nenhuma razão pela qual um surdo que fala a outro surdo se interrompa. O senhor Florian ia se lançar à alta eloqüência, quando a porta dos fundos se abriu de repente, dando passagem ao chefe da magistratura. À sua entrada, o ouvidor parou de repente.
- Senhor - disse Florian Bardebienne a Roberto d'Estouteville, que acabara de entrar -, peço a penalidade que lhe agradar contra o acusado presente, por violação grave da lei.
Depois disso, o ouvidor sentou-se, enxugando o suor que lhe escorria da testa e que molhava as folhas do processo que tinha diante de si. O senhor d'Estouteville franziu as sobrancelhas e chamou a atenção de Quasímodo com um gesto tão imperioso que este compreendeu algo. Com severidade, o magistrado dirigiu-lhe a palavra:
- O que você fez para estar aqui, tratante?
O infeliz, supondo que o magistrado perguntava seu nome, quebrou o silêncio que mantinha habitualmente e respondeu com uma voz rouca e gutural:
- Quasímodo.
A resposta encaixava-se tão mal com a pergunta que as gargalhadas recomeçaram. O senhor Roberto gritou, vermelho de cólera:
- Está zombando de mim?
- Sineiro na catedral de Notre-Dame - respondeu Quasímodo, achando que deveria dizer ao juiz sua profissão.
- Sineiro! - repetiu o juiz-mor, que havia acordado naquela manhã bem mal-humorado, de modo que sua fúria não tinha necessidade de ser provocada por tão estranhas respostas. - Sineiro! Farei com que lhe apliquem muitos golpes de varas nas costas, está escutando?
- Se é minha idade que quer saber - disse Quasímodo -, farei vinte anos no dia de São Martin.
Aquilo foi demais e Roberto d'Estouteville não conseguiu se conter:
- Você está zombando da corte, miserável! Sargentos, levem este palhaço ao pelourinho da Praça da Greve e apliquem nele uma surra durante uma hora. Ele irá me pagar!
O escrevente em poucos minutos redigiu o veredicto, contudo, no momento em que o senhor Florian Bardebienne lia a sentença para assiná-la, o escrivão sentiu-se comovido e teve piedade do pobre condenado. Assim, na esperança de obter alguma diminuição na pena, aproximou-se tanto quanto possível da orelha do ouvidor e disse-lhe, apontando Quasímodo:
- Este homem é surdo.
Esperava ele que tal coincidência de enfermidade despertasse o interesse do senhor Florian a favor do condenado. Mas, em primeiro lugar, já observamos que o ouvidor não se incomodava com o fato de as pessoas perceberem sua surdez. Além disso, ele era tão surdo que não compreendeu uma só palavra que o escrevente lhe disse. No entanto, quis dar a impressão de entender e respondeu:
- Ah, então é diferente. Eu não sabia disso. Neste caso, que fique uma hora a mais no pelourinho!
E assinou a sentença assim modificada.