O Corcunda de Notre-Dame, Victor Hugo - 14


CAPÍTULO 14
Châteaupers vem em socorro


O corajoso Quasímodo, sitiado de todos os lados, havia perdido a esperança de salvar a cigana e corria sobre a galeria. Notre-Dame seria tomada pelos malfeitores. De repente, um grande galope de cavalos encheu as ruas vizinhas e uma espessa coluna de cavaleiros desembocou na praça como um furacão:
- Viva a França! Acabem com os camponeses! Châteaupers vem em socorro!
Quasímodo viu as espadas nuas, as tochas, o ferro das lanças, toda aquela cavalaria, à frente da qual reconheceu o capitão Febo, e observou o medo em alguns malfeitores, a confusão em outros.
Era, na verdade, a tropa do rei que acudia. Os cavaleiros reais, entre os quais Febo de Châteaupers, se comportavam com valentia, não demonstrando misericórdia. A multidão de mendigos, mal armada, espumava e mordia. Homens, mulheres e crianças atiravam-se aos lombos e peitos dos cavalos e se penduravam neles. Outros obstruíam com tochas a visão dos arqueiros.
Viu-se um homem que levava uma grande foice brilhante decepar durante muito tempo as pernas dos cavalos. Era assustador. A cada golpe, ele fazia em torno de si um grande círculo de membros cortados. Avançava assim tranquilamente como um camponês que começa a trabalhar num campo de trigo. Era Clopin Trouillefou, logo abatido. Por fim, os malfeitores se renderam e fugiram em todas as direções, deixando sobre o pátio uma balbúrdia de corpos.
Quando Quasímodo, que não havia parado um único instante de combater, viu esta confusão, caiu de joelhos e levantou as mãos para o céu. Em seguida, cheio de alegria, correu e subiu com a velocidade de um pássaro em direção do esconderijo de Esmeralda que ele havia defendido de forma tão intrépida da invasão. Mas, quando ele entrou, encontrou-a vazia.
No momento em que os malfeitores haviam sitiado a igreja, Esmeralda dormia. Logo, o rumor sempre crescente em redor do edifício e o balir inquieto de sua cabra acordaram-na. Ela se sentou e pôs-se a escutar.
O aspecto do lugar, a desordem do ataque noturno e a multidão medonha levaram-na ao pânico. Toda a cena lhe causou o efeito de uma misteriosa batalha e, amedrontada, ela se encolheu em seu esconderijo.
Aos poucos, as primeiras névoas de medo dissiparam-se. Caída de joelhos, com a cabeça sobre a cama, cheia de ansiedade e agitação, ela começou a pedir clemência ao bom Deus cristão e a rezar para Nossa Senhora, sua protetora.
Prostrada assim, continuou durante muito tempo. Até que no meio da angústia, ouviu alguém que caminhava perto dela. Virando-se, viu dois homens entrarem no esconderijo e soltou um grito fraco.
- Não tenha medo! - disse-lhe uma voz conhecida. - Sou eu.
- Quem? - perguntou.
- Pierre Gringoire, seu marido.
Este nome a tranqüilizou e ela levantou os olhos, reconhecendo-o. Mas havia perto dele alguém vestido inteiramente de preto.
- Djali - continuou Gringoire com um tom de censura - reconheceu-me antes de você!
A pequena cabra, realmente, apenas esperou que Gringoire dissesse seu nome e já estava se esfregando com ternura em seus joelhos, cobrindo-o de carícias.
- Quem está aí com você? - perguntou Esmeralda em voz baixa.
- Não se preocupe! - respondeu Gringoire. - É um dos meus amigos.
O homem de preto aproximou-se de Gringoire e disse-lhe alguma coisa, pois o poeta exclamou:
- É verdade! Já ia me esquecendo. Estamos com pressa! Minha jovem, sua vida está perigo, assim como a de Djali. Querem enforcá-la. Somos seus amigos e viemos salvá-la. Siga-nos.
- É verdade? - ela gritou, perturbada.
- Sim. Venha rapidamente!
- Então, vamos! - balbuciou. - Mas por que seu amigo não fala?
- Ah! - disse Gringoire. - Não se preocupe com ele.
O poeta tomou-a pela mão. Seu companheiro recolheu a lanterna e caminhou na frente. O medo aturdia a moça e ela se deixou levar. A cabra os seguia saltitando, tão feliz por reencontrar Gringoire que o fazia tropeçar a todo instante.
Desceram rapidamente a escadaria das torres, atravessaram a igreja envolta em trevas e solidão e saíram. O homem que carregava a lanterna caminhou diretamente em direção à beira da água, onde um pequeno barco estava escondido. Ele fez um sinal para que Gringoire e sua companheira entrassem e a cabra os seguiu. O estranho embarcou por último. Em seguida, cortou as amarras do barco, afastou-o da terra com um longo gancho e, segurando dois remos, sentou-se na proa, remando com todas as forças.
O primeiro cuidado de Gringoire foi pôr a cabra sobre os joelhos. Ele sentou-se na parte traseira e a moça, a quem o desconhecido inspirava um medo indefinível, veio se sentar a seu lado. Quando o poeta sentiu a embarcação em movimento, bateu as mãos e beijou Djali entre os chifres.
- Oh! - disse. - Estamos todos salvos.
O pequeno barco deslizava sobre a água, enquanto a moça observava o desconhecido com um terror secreto, vendo-o quase como um fantasma. De repente, Gringoire exclamou:
- O barulho recomeçou!
O tumulto realmente crescia em torno de Notre-Dame e eles escutaram. Gritos de vitória eram claramente ouvidos. Ao longe, cem tochas que faziam faiscar os capacetes dos militares espalharam-se pela igreja e os três fugitivos puderam ouvir coisas como:
- Morte à cigana! Que morra a egípcia!
A infeliz deixou cair a cabeça entre as mãos e o desconhecido se pôs a remar com fúria em direção à outra margem. Contudo, o poeta se preocupava. Pressionando a cabra em seus braços, pensava que ela também seria enforcada se fosse capturada, dando-lhe enorme prejuízo.
Um tremor o avisou que a embarcação chegara ao destino. A confusão sinistra continuava na cidade. O desconhecido se levantou, aproximou-se da cigana e quis tomar-lhe nos braços para ajudá-la a descer. Ela, porém, afastou-o e se pendurou em Gringoire que, por sua vez, ocupado com a cabra, quase a repeliu. Não lhe restou outra coisa senão saltar sozinha da embarcação.
Estupefata, ela permaneceu por um momento observando a água correr e, quando voltou a si, estava lado a lado com o desconhecido. Gringoire havia aproveitado o desembarque para fugir com a cabra.
A pobre cigana arrepiou-se ao encontrar-se sozinha com este homem. Quis chamar Gringoire, mas nenhum som saiu de seus lábios. De repente, sentiu a mão dele sobre a sua e seus dentes bateram. Sem dizer uma palavra, ele pôs-se a caminhar a passos largos para a Praça da Greve, segurando a mão dela, que, sem forças, deixou-se levar.
Ela olhou em todas as direções, mas não viu um único ser vivo. O cais estava absolutamente deserto. O desconhecido a arrastava sempre com o mesmo silêncio e a mesma rapidez e ela não reconhecia nenhum dos lugares por onde andava. Diante de uma janela iluminada, fez um esforço e gritou:
- Socorro!
O homem de preto não proferiu sequer uma sílaba. Segurou-a com força e caminhou mais rapidamente. Ela não se opôs mais e o seguiu, derrotada.
Às vezes, ela perguntava:
- Quem é você?
Mas ele não respondia.
Assim chegaram, sempre caminhando ao longo do cais, a uma praça bastante grande, iluminada parcialmente pela luz da lua. Era a Praça da Greve, em cujo centro podia-se distinguir uma espécie de cruz preta de pé: a forca. Ela reconheceu o local e percebeu onde estava. Foi então que o homem virou-se para ela, levantando o capuz.
- Oh! Não! - ela gaguejou petrificada. - Eu sabia que era você novamente.
Tratava-se do arcebispo, que parecia propriamente um fantasma, por conta do efeito da luz da Lua.
- Escute - ele disse com uma voz sombria. - Esta é a Praça da Greve, um ponto extremo. Há uma sentença que a condena à forca. Eu a tirei das mãos da multidão, mas eles continuam a persegui-la. Veja.
Ele apontou em direção à cidade e ambos puderam ver o tumulto, a desordem, a confusão.
- Está vendo? Eles ainda a perseguem, mas posso salvá-la. Tenho tudo preparado. Você só precisa querer.
Puxando-a apressadamente, ele dirigiu-se para a forca e a apontou com o dedo:
- Escolha entre nós dois - disse friamente.
Ela escapou de suas mãos e caiu ao pé da forca. Em seguida, virou a cabeça e olhou o padre por sobre o ombro, dizendo:
- A forca me causa menos horror do que o senhor!
Ele deu um grito violento, como o miserável ao qual se aplica o ferro em brasa.
- Morra, então! - disse, rangendo os dentes.
O arcebispo a sacudiu e caminhou a passos rápidos em direção à esquina da Tour-Roland, arrastando-a atrás de si. Ao chegar, pôs-se a gritar muito alto:
- Gúdula! Gúdula! Aqui está a egípcia! Venha se vingar!
De repente, a moça sentiu que era agarrada subitamente por um braço que saía da pequena janela.
- Segure firme! - disse o padre. - É a egípcia fugida. Não a solte. Vou procurar os sargentos e você verá seu enforcamento.
A moça reconheceu a enclausurada e, ofegante de medo, tentou se libertar. Enquanto se contorcia, ouvia Gúdula dizer em voz baixa:
- Você será enforcada!
Ela se virou, agonizante, para a janela.
- O que fiz para a senhora?
A reclusa gritou:
- O que você me fez, egípcia? Escute. Eu tinha uma criança, está entendendo? Uma criança: estou dizendo! Uma bonita menina! Minha Agnes. E a levaram de mim. Minha filha foi roubada. Aí está o que você me fez.
Humildemente, a moça respondeu:
- Mas talvez eu ainda não fosse nascida!
- Pois sim! - continuou a enclausurada. - Você já era nascida! Ela teria a sua idade! Há quinze anos estou aqui, há quinze anos sofro, rezo e bato minha cabeça contra estes muros. Eu digo que as egípcias roubaram minha filha.
- Senhora! - gritou a pobre condenada juntando as mãos. - Eles estão chegando. Não lhe fiz nada. Quer ver minha morte diante dos olhos? A senhora é piedosa, tenho certeza. Deixe que eu me salve. Não quero morrer assim!
- Devolva minha pequena Agnes! - prosseguiu Gúdula - Você não sabe onde ela está? Então, morra! As egípcias a roubaram. Veja o que vou mostrar. Veja o seu sapato, o único que me resta. Sabe onde está o outro pé? Diga-me!
Enquanto com um braço ela segurava Esmeralda, com o outro ela alcançou o pequeno sapato que repousava na cela. A menina, então, tremendo, tentou abrir o saquinho bordado que carregava no pescoço.
- Vai! - murmurou Gúdula. - Encontre logo este amuleto do mal!
De repente, ela parou, gritando com uma voz que vinha das mais profundas entranhas:
- Minha filha!
Esmeralda acabara de tirar do saquinho um pequeno sapato exatamente igual ao outro. Mais rápida do que um raio, a enclausurada comparou o par e, colando à grade da janela o rosto que brilhava com uma alegria celestial, gritou:
- Minha filha!
- Mamãe! - respondeu Esmeralda.
A parede e as barras de ferro interpunham-se entre elas.
- A parede! - gritou a enclausurada. - Dê-me sua mão!
A moça passou seu braço através da janela e a enclausurada colou seus lábios nele. De repente, ela se levantou e começou a balançar com as mãos as barras, mas elas resistiram. Então, ela foi procurar num canto do quarto uma grande pedra e a atirou com tanta violência que uma das barras se partiu. Um segundo golpe quebrou completamente a velha cruz de ferro que delimitava a janela. Com as duas mãos, terminou de quebrar e afastar os pedaços oxidados. A passagem ficou aberta e ela segurou a filha, puxando-a devagar para a cela.
- Minha filha! - dizia. - Minha filha está comigo! O bom Deus a devolveu.
A moça repetia, de tempos em tempos, com uma doçura infinita:
- Mamãe!
- Veja, minha filha! - continuava a enclausurada entre cortando as palavras com beijos. - Seremos felizes.
Neste momento, soou um ruído de armas e Esmeralda atirou-se angustiada nos braços da mãe.
- Salve-me, mamãe, eles estão aqui!
Gúdula ficou pálida.
- Eu tinha me esquecido de que a perseguem! Vou falar com eles. Esconda-se neste canto. Eles não a verão. Direi que você escapou.
Mal havia terminado quando uma confusão de homens, espadas e cavalos parou diante da alcova. Ela levantou-se e se postou na frente da janela, tentando tapá-la.
- Velha - disse o comandante -, procuramos uma bruxa.
Disseram que ela está aqui.
- Se estão falando de uma moça jovem, ela me mordeu e eu a soltei.
O capitão fez uma careta de desapontamento.
- Capitão - disse de repente um arqueiro -, pergunte então à velha por que as barras de sua janela estão neste estado.
- Elas sempre foram assim - gaguejou.
- Mentira! - continuou o arqueiro. - Ainda ontem havia uma bela cruz preta aqui.
- Vejam só quem está agindo de forma suspeita! - disse
o capitão.
- Senhor - ela gritou -, uma carroça quebrou a grade.
Esmeralda havia permanecido todo o tempo em seu canto, sem sequer respirar e não perdeu um só segundo da cena, afligindo-se também com cada uma das angústias da mãe. De repente, ouviu uma voz que dizia ao arcebispo:
- Ora, senhor arcebispo, como homem de armas, não é
a mim que compete enforcar bruxas. Eu os deixo cuidar disso sozinhos. Acho que os senhores concordarão que eu vá me juntar à minha companhia.
Era a voz de Febo de Châteaupers. Então ele estava lá, seu amigo e protetor! Esmeralda levantou-se e, antes que sua mãe pudesse impedir, lançou-se à janela, gritando:
- Febo! Estou aqui!
No entanto, o oficial não estava mais lá. Acabara de virar, a galope, a esquina da rua de Ia Coutellerie. A enclausurada precipitou-se sobre a filha, com um grito, puxando-a violentamente para trás, mas era muito tarde.
- Ah! - gritou o capitão. - Dois ratos na ratoeira!
Gúdula não disse uma palavra. Atirando a pobre filha meio morta num canto da alcova, voltou à janela e pôs-se a olhar intrepidamente todos os soldados. Balançou a cabeça e começou a dizer:
- Não tem ninguém! Não tem ninguém!
- Tem sim - continuou o carrasco, que acabava de chegar. - Você sabe muito bem. Deixe que eu prenda a bruxa.
Não quero machucá-la, senhora.
- Velha - disse o capitão num tom severo -, por que quer impedir que esta bruxa seja enforcada?
A miserável deixou escapar um riso selvagem.
- Ela é minha filha!
- Sinto muito, mas é a vontade do rei.
- O que me importa o rei? Estou dizendo que ela é minha filha!
- Derrubem a parede!
Quando a mãe ouviu as picaretas e alavancas minarem sua fortaleza, deu um grito tremendo. Em seguida, começou a rodopiar com uma velocidade assustadora em seu cubículo. Não dizia mais nada, mas seus olhos brilhavam.
De repente, pegou uma pedra e a jogou sobre os soldados. Lançada sem direção, porque suas mãos tremiam, o objeto acabou não atingindo ninguém. Ela rangeu os dentes e foi se sentar perto da moça, cobrindo-a com seu corpo e ouvindo a jovem, que não se movia e só murmurava:
- Febo! Febo!
De repente, a enclausurada viu a parede desmoronar e ouviu a voz do capitão que incentivava os soldados. Fez, então, com o corpo, uma espécie de barricada diante da brecha, torcendo os braços, batendo a cabeça contra o ladrilho e gritando:
- Socorro! Socorro!
- Agora, peguem a moça - disse o chefe impassível.
A mãe olhou os soldados de uma maneira tão terrível que eles tinham mais vontade de recuar do que de avançar. Ninguém deu um passo. Gúdula sentou-se subitamente sobre os joelhos, afastando os cabelos do rosto, e, em seguida, deixou cair as mãos magras e esfoladas sobre as coxas. Então, grandes lágrimas saíram uma a uma de seus olhos. Ao mesmo tempo, começou a falar com uma voz suplicante, tão suave, tão submissa e tão dolorosa que os soldados, comovidos, enxugavam o pranto.
- Senhores, uma palavra! É uma coisa que preciso dizer. É minha filha, entendem? A minha querida filha que eu tinha perdido! Ouçam minha história. O que ela fez para vocês? Absolutamente nada. Eu também não. Saibam que tenho apenas a ela, que sou velha. Foi a Virgem Santa que a enviou. Além disso, vocês todos são tão bons! Vocês não sabiam que era minha filha, agora, sabem... Oh! Vocês são tão bons, senhores sargentos. Gosto de todos vocês. Vocês não tomarão de mim a minha querida filha! A minha criança!
O carrasco e os sargentos entraram na cela e a mãe não opôs nenhuma resistência. Apenas arrastou-se para a jovem e lançou-se sobre ela.
Esmeralda viu os soldados se aproximarem.
- Mamãe! - gritou. - Eles vêm vindo! Ajude-me!
- Sim, meu amor, eu irei protegê-la! - respondeu a mãe com uma voz apagada.
Apertando-a com força em seus braços, Gúdula cobriu Esmeralda de beijos. As duas, caídas no chão, encenavam um espetáculo digno de piedade. O carrasco, comovido, quis carregar a jovem em seus braços. Ele tentou soltar a mãe, que havia entrelaçado as mãos em torno da cintura da filha, mas ela estava como que fixada tão fortemente à menina que era impossível separá-las. Apenas com a ajuda de vários soldados foi possível prender Esmeralda, que desmaiou.
O carrasco arrastou a moça para fora da cela e a mãe logo depois. Uma hora mais tarde, a justiça dos homens foi feita.
A reclusa não sobreviveu à sua desgraça, morrendo fulminada por um ataque do coração.
Quanto a dom Cláudio, ele também teve um fim trágico. Depois de ter descoberto que foi o arcebispo quem tirou Esmeralda do esconderijo e a entregou aos soldados, Quasímodo, enfurecido, jogou-o da parte superior de Notre-Dame. Cláudio Frollo, então, espatifou-se no pátio.
Febo de Châteaupers casou-se com a moça que tanto visitava.
Quasímodo desapareceu de Notre-Dame no dia da morte de Esmeralda e do arcebispo. Nunca mais foi visto, nem se soube de sua sorte.
Na noite que se seguiu ao suplício de Esmeralda, o corpo da jovem foi retirado e levado, de acordo com a tradição, para a caverna de Montfaucon, onde eram jogados os infelizes executados nas forcas de Paris.
Quanto ao misterioso desaparecimento de Quasímodo, eis o que pudemos descobrir. Dois anos após esses acontecimentos, foram encontrados em Montfaucon dois esqueletos singularmente abraçados. Um deles, que era de uma mulher, ainda tinha um pedaço de tecido que havia sido branco, e se via em torno de seu pescoço um colar com um pequeno saquinho de seda que estava aberto e vazio. Tais objetos tinham tão pouco valor que o carrasco, sem dúvida, não os quis. O outro corpo, que abraçava fortemente o primeiro, era um esqueleto de homem. Percebia-se que ele tinha a coluna vertebral torta, a cabeça afundada nas omoplatas e uma perna mais curta que a outra. Não possuía, no entanto, nenhuma ruptura de vértebra na nuca, e era evidentemente o único que não tinha sido enforcado. O homem ao qual ele havia pertencido, portanto, morrera ali. Quando quiseram separá-lo do esqueleto que abraçava, desfez-se em poeira.


POR DENTRO DO TEXTO
Victor Hugo - perfil biográfico

Dizer apenas que Victor Hugo nasceu em Besançon, em 1802, e morreu em Paris, em 1885, é ter a ilusão de poder juntar dois pontos com uma simples linha reta. A vida deste cidadão francês foi intensa e turbulenta o suficiente para abranger a parte mais considerável do século XIX, que nas palavras do escritor era "grande e forte".
Filho de um general dos exércitos napoleônicos, Victor Hugo conheceu em vida o sucesso e desempenhou diversos papéis fundamentais na história da França - o que o levou a ser enterrado no Pántheon, monumento destinado a acolher os grandes heróis do país.
Não lhe bastou ser um extraordinário escritor, colecionando sucessos, desde dramas como Cromwell (1827), passando por sua inesgotável produção de poesia - Vozes interiores (1837), Os castigos (1853), As contemplações (1856) - até a série de romances célebres como O corcunda de Notre-Dame (1831), Os miseráveis (1862) e Os trabalhadores do mar (1866).
Seu engajamento político e social foi dos mais genuínos. Em 1851, Luís Napoleão Bonaparte se transforma, por meio de um golpe de estado, em Napoleão III. Victor Hugo abandona os salões confortáveis da Academia Francesa para exercer oposição ao governante. Seguem 19 anos de exílio nos quais ele nunca deixou de criticar o poder monárquico e de denunciar as injustiças sociais.
De volta à França, aos 64 anos, ele toma partido dos derrotados na Comuna de Paris (1871), sendo eleito deputado e, posteriormente, senador, com ativa atuação política e literária até a morte, em 1885.


Notre-Dame de Paris ou o elogio medieval

Inúmeras traduções ao redor do mundo consagraram o nome de O corcunda de Notre-Dame para o romance de Victor Hugo, publicado em 1831, com o título de Notre-Dame de Paris. Tal escolha acaba por fazer com que a leitura eleja o sineiro Quasímodo como figura central do romance. Entretanto, uma observação mais atenta revelará que a grande personagem da obra, sem dúvida, é a própria catedral.
Como grande expoente do movimento romântico na Europa, que propôs um retorno aos valores medievais, Victor Hugo empreendeu um verdadeiro discurso a favor da valorização do patrimônio arquitetônico e histórico dos franceses que estaria sendo destruído.
Mais do que um romance, o livro acaba funcionando também com uma espécie de panfleto político. Escrito em meio aos rescaldos da Revolução Liberal de 1830, o texto critica o tecido social de então: um clero corrupto e vil, uma justiça arbitrária e surda e uma sociedade desigual, repleta de miséria, ignorância e superstição. É esse o cenário que o escritor quer descortinar e que o homem político deseja alterar.
Curiosamente, a Catedral de Notre-Dame foi restaurada em 1859, conforme Victor Hugo preconizara.


A catedral

A Catedral de Notre-Dame foi construída entre 1160 e 1280 e é uma espécie de testemunha dos principais acontecimentos da história francesa. Danificada durante a Revolução Francesa, foi restaurada em meados do século XIX.
É a mais importante catedral gótica da Europa, o estilo característico da baixa Idade Média. O edifício apresenta arcos em forma de ogivas e o interior do templo é bastante iluminado, devido aos inúmeros vitrais espalhados por suas paredes.
A igreja abrigou a escola que daria origem à atual Universidade de Paris e hoje não é somente um símbolo cristão. Além do apelo turístico, Notre-Dame adquiriu um caráter ecumênico. As estátuas de Ecclesia e Sinagoga, simbolizando o cristianismo e o judaísmo respectivamente, ilustram bem as contradições medievais.


Os dois lados da aventura humana

As contradições do mundo são a marca registrada da obra. Os temas e os assuntos apresentados pela narrativa alternam o sagrado e o profano, a tragédia e a comédia, o sucesso e o infortúnio, a riqueza e a pobreza, o grotesco e o sublime. É como se cada dupla desta se constituísse em um único fio que se desdobra em duas pontas. Onde começa e termina cada extremidade é uma pergunta que somente a aventura da vida humana, registrada de modo muito especial pela literatura, pode responder.
Ao lado das celebrações religiosas, sérias e solenes, que ocupam o espaço da catedral, desfilam festas de caráter essencialmente popular, alegres, irreverentes e debochadas, como a Festa dos Loucos, por exemplo. A história alterna a vida trágica de Quasímodo e Esmeralda com os episódios de pura comicidade que envolvem o poeta Pierre Gringoire. Cenários opulentos e personagens ricos e bem-sucedidos misturam-se aos ambientes pobres por onde circulam mendigos e infelizes de toda sorte. Por fim, há momentos sublimes, de pura sensibilidade, como a dedicação de Quasímodo à cigana, o reencontro de Gúdula com sua filha ou a paixão de Esmeralda por Febo, que revelam um outro lado - ridículo, grosseiro, grotesco: o amor impossível de um sujeito caolho, manco e corcunda por uma bela jovem; o reencontro tão esperado entre mãe e filha e sua única conseqüência imediata, a morte de ambas; a paixão de uma cigana por um oficial para quem, na verdade, ela nunca passou de uma brincadeira inconseqüente.




O bode expiatório

É muito antiga a crença de que o sacrifício de algum animal poderia aplacar a ira dos deuses, fazendo diminuir o insucesso dos homens. Tal prática ancestral está na base do que hoje conhecemos como a figura do bode expiatório: uma pessoa sobre quem se faz recair as culpas alheias ou que acaba assumindo a responsabilidade por todas as desgraças ocorridas.
Ao longo da Idade Média, período em que ocorre a história do livro, aqueles considerados bruxos ou hereges eram levados à morte, pela forca ou fogueira, já que toda e qualquer diferença de pensamento ou crença deveria ser sempre reprimida. As execuções públicas atendiam a uma necessidade disciplinar: o sacrifício de alguns servia de modelo para todos.
Em O corcunda de Notre-Dame dois personagens assumem a função de bodes expiatórios perante os outros.
Quasímodo, por conta de sua deformidade física, é expulso do convívio social desde muito cedo. Quando eleito Papa dos Loucos (ritual muito parecido com a escolha do Rei Momo dos carnavais atuais), é aclamado e festejado por todos. Uma vez que é condenado - por uma justiça surda, diga-se de passagem -, vira alvo de escárnio e humilhação. É como se as personagens do romance não soubessem lidar com a feiúra e a limitação física, tratando-as somente por meio do deboche e da aversão.
Esmeralda é a jovem perseguida unicamente por ser uma cigana, embora no final da história se revele sua verdadeira origem. Linda e graciosa, é maltratada pelos outros e igualmente condenada pela justiça. Aqui, as demais personagens não sabem lidar com o belo e o estrangeiro, atribuindo-lhes todos os males possíveis.
A lógica do bode expiatório pode ser explicada socialmente até hoje pelos dois fatores que motivam as massas: o sadismo e a necessidade da ordem. Encontrar culpados é diminuir a culpa de todos.