O Corcunda de Notre-Dame, Victor Hugo - 13


CAPÍTULO 13
Viva a alegria


Uma noite, no momento em que o toque de recolher soava em todos os campanários de Paris, os sargentos da ronda, se lhes fosse permitido entrar no Pátio dos Milagres, poderiam ter observado que o tumulto era maior do que o normal, que se bebia mais e que se praguejava melhor. Havia muita gente que conversava em voz baixa, como quando se trama uma grande ação.
Qualquer que fosse a confusão, após uma primeira olhada, podiam-se distinguir três grupos principais que se amontoavam ao redor de três personagens. Um deles, vestido de forma bizarra, era Mathias Hungali Spicali, duque do Egito e da Boêmia. Uma outra multidão se formava ao redor de nosso antigo amigo Clopin Trouillefou, que, com um ar muito sério e em voz baixa, distribuía armas contidas num barril bastante espesso, de onde saíam machados, espadas e lanças de ferro. Cada um apanhava um punhado delas. As próprias crianças se armavam e havia até os mancos que, de armadura e couraça, passavam entre as pernas dos bêbados como besouros gordos. Por último, um terceiro grupo, mais ruidoso, alegre e numeroso, enchia os bancos e as mesas, no meio dos quais discursava um jovem engraçado coberto por uma pesada armadura.
- Viva! - ele gritava. - Pela primeira vez na vida pego em armas! Sou um malfeitor, meus amigos. Atendo pelo nome de Jean Frollo e sou cavalheiro. Irmãos, nós faremos uma bela expedição. Viva a alegria! Somos valentes. Cercar a igreja, derrubar suas portas, retirar a moça, salvá-la dos juizes! Faremos isso em menos tempo do que leva o prefeito tomando uma colher de sopa. Nossa causa é justa. Invadiremos Notre-Dame e tudo estará feito. Enforcaremos Quasímodo, vocês o conhecem? Vocês o viram resfolegar sob o grande sino no dia de Pentecostes?
A multidão aplaudia com explosões de riso.
- A pobre Esmeralda - dizia um cigano - é nossa irmã. É preciso tirá-la de lá.
- Ela ainda está em Notre-Dame? - continuou outro.
- Sim, em nome de Deus!
- Camaradas! - gritava-se por toda parte. - Vamos salvá-la.
Clopin Trouillefou terminou a distribuição de armas, saiu e retornou, após alguns momentos, gritando com uma voz de trovão:
- Meia-noite!
Ao ouvir esta palavra, todos os malfeitores - homens, mulheres e crianças - precipitaram-se em multidão para fora da taberna com um grande ruído de armas e de ferragens.
O Pátio dos Milagres ficou completamente escuro, distinguindo-se somente uma multidão de homens e mulheres que falavam baixo. Um grande zumbido era ouvido e armas brilhavam na penumbra. Clopin subiu numa grande pedra e gritou:
- Às posições!
A imensa multidão posicionou-se em coluna e Clopin aumentou ainda mais sua voz:
- Agora, silêncio para atravessar Paris! A senha é: peque na chama passeando! Acenderemos as tochas apenas ao chegar a Notre-Dame. Em marcha!
Dez minutos mais tarde, os cavaleiros da ronda fugiam amedrontados diante da longa procissão dos silenciosos homens vestidos de preto que desciam em direção à Pont-au-Change, através das ruas tortuosas que cortavam o bairro dos Mercados.
Nesta mesma noite, Quasímodo não dormiu. Ele acabara de fazer a última ronda pela igreja sem perceber que o arcebispo passou a seu lado com certo desconforto ao vê-lo fechar cuidadosamente com o cadeado a enorme porta da catedral. Dom Cláudio tinha o ar ainda mais preocupado do que o normal. Ele maltratava constante-mente Quasímodo, mas este não se importava em sofrer ou mesmo apanhar. Nada abalava a submissão, a paciência e a resignação do fiel sineiro. De Cláudio Frollo ele sofria tudo, ofensas, ameaças, golpes, sem murmurar uma queixa, sem exprimir uma reclamação. No máximo, acompanhava-o com o olhar quando Dom Cláudio subia a escadaria da torre.
Assim, nesta noite, Quasímodo, após ter dado uma olhadela em seus pobres sinos tão abandonados, subiu até o topo da torre setentrional e de lá se pôs a observar Paris. A cidade, que não era tão iluminada ainda nessa época, apresentava aos olhos uma confusão de massas pretas, cortadas aqui e ali pela curva esbranquiçada do rio Sena.
Enquanto deixava o único olho flutuar neste horizonte de bruma e de noite, o sineiro sentia em seu próprio interior uma apreensão inexprimível. Há vários dias ele estava de guarda e via circular incessantemente em redor da igreja homens com um ar sinistro que não paravam de observar o asilo da moça. Achando que talvez houvesse alguma conspiração contra a infeliz refugiada, ele percebeu que existia um ódio popular contra ela e contra ele mesmo, concluindo que logo alguma coisa iria acontecer. Sobre o sino, ele se manteve vigilante, montando guarda como um bom cão.
De repente, ao varrer a cidade com seu olho agudo, pareceu-lhe ver algo de singular do lado do cais e redobrou a atenção. O movimento vinha em direção à cidade e, enquanto Quasímodo fazia suposições, ressurgiu mais perto. Por fim, ele viu uma coluna humana desembocar diante de Notre-Dame e, instantaneamente, espalhar-se pela praça.
Seus temores retornaram e a idéia de um atentado contra a cigana invadiu-lhe o espírito. Sentiu confusa-mente que se aproximava de uma situação violenta. Deveria despertá-la? Fazê-la fugir? Para onde? As ruas tinham sido tomadas e a igreja estava encurralada pelo rio. Ele não tinha um barco! Não havia saída! Apenas uma idéia lhe ocorria: resistir até que o socorro chegasse, se chegasse, e não perturbar o sono de Esmeralda. Era muito cedo para acordar a infeliz para a morte. Uma vez tomada a resolução, ele se pôs a examinar o "inimigo" com mais tranqüilidade.
A multidão parecia aumentar a cada instante e ele presumiu apenas que eles deviam fazer muito pouco barulho, pois as janelas das casas continuavam fechadas.
De repente, uma luz brilhou e num instante sete ou oito tochas acesas passearam sobre as cabeças d.o bando. Quasímodo viu distintamente um grupo assustador de homens e de mulheres esfarrapados mover-se em ondas, armados de facas, foices e facões, com milhares de pontas brilhantes. Ele se lembrou vagamente dessa ralé e pensou reconhecer todos que, há alguns meses, o tinham saudado como o Papa dos Loucos. O corcunda apanhou sua lanterna e desceu sobre a plataforma entre as torres para ver tudo mais de perto e decidir os meios de defesa.
Clopin Trouillefou, ao chegar diante do grande portal de Notre-Dame, organizou seu bando em posição de batalha. Embora não esperasse nenhuma resistência, ele queria, na verdade, ser cuidadoso, mantendo certa ordem que lhe permitisse reagir, se necessário, contra um ataque repentino da ronda.
Era fato muito raro nas cidades medievais uma tentativa como aquela que os malfeitores empreendiam contra Notre-Dame. Por outro lado, não existia polícia ainda.
Quando os preparativos iniciais terminaram (e devemos dar crédito à disciplina dos vagabundos, pois as ordens de Clopin foram executadas em silêncio e com uma admirável precisão), o digno chefe dos revoltosos subiu sobre o parapeito do muro que cercava o terreno da catedral e gritou com sua voz rouca agitando sua tocha:
- Nossa irmã, falsamente condenada por magia, refugiou-se na igreja. Devemos salvá-la, pois os juízes querem tirá-la de lá para enforcá-la amanhã. Por isso estamos aqui. Queremos salvar uma inocente!
Quasímodo, infelizmente, não pôde ouvir aquelas palavras pronunciadas com uma espécie de majestade sombria. Um dos malfeitores ofereceu sua bandeira a Clopin, que a fincou solenemente entre duas pedras do calçamento.
Isso feito, o chefe dos mendigos virou-se e percorreu com o olhar seu exército, uma multidão selvagem em que os olhos brilhavam quase tanto quanto as espadas. Depois de um instante de pausa, ele gritou:
- Adiante, companheiros! Ao trabalho!
Trinta homens robustos saíram das filas, com martelos, alicates e barras de ferros sobre os ombros. Dirigindo-se à porta principal da igreja, eles subiram a escadaria e se agacharam sob os arcos. Uma multidão de malfeitores os seguiu para ajudá-los ou observá-los e logo os onze degraus do portal estavam atravancados. No entanto, a porta resistia.
- Ela é dura e teimosa! - dizia um.
- Coragem, camaradas! - incentivava Clopin. - Eu aposto minha cabeça que vocês terão aberto a porta antes que um único sacristão acorde. Esperem! Acho que a fechadura está se movendo.
Clopin foi interrompido por um estampido pavoroso que ressoava naquele momento atrás dele e se virou. Uma enorme viga de madeira acabava de cair do céu, esmagando uma dúzia de malfeitores sobre o degrau da igreja, e saltara sobre o calçamento com o barulho de um tiro de canhão, quebrando aqui e ali pernas da multidão de mendigos que e afastava com gritos de horror. Num piscar de olhos, acercada diante da catedral estava vazia e até mesmo tomou distância respeitosa do edifício.
- Escapei por pouco! - gritou Jean. - Senti até o vento.
É impossível descrever o misto de surpresa e temor que se abateu sobre os bandidos. Todos permaneceram durante alguns minutos com os olhos fixos no ar.
- Isso cheira à magia! - disse um.
- Foi a Lua que nos atirou este tronco! - disse outro.
E ninguém sabia explicar a queda da tora. Clopin, passado o susto inicial, acabou encontrando uma explicação que pareceu plausível a seus companheiros.
- Os padres estão se defendendo? Pois, então, ao saque!
- Ao saque! - repetiu a multidão com uma aclamação furiosa.
Seguiu-se uma disparada de flechas contra a fachada da igreja. Os pacatos moradores das casas vizinhas acordaram, várias janelas se abriram e toucas de dormir e mãos carregando velas apareceram nos cruzamentos.
- Atirem nas janelas! - gritou Clopin.
As janelas se fecharam imediatamente e os pobres burgueses, que mal tiveram tempo de olhar a cena, voltaram suando de medo para perto de suas mulheres, perguntando-se se estava ocorrendo um ataque de borgonheses como em 1464.
- Ao saque! - repetiam os malfeitores, embora não ousassem se aproximar.
Eles olhavam para a igreja e para a tora, e esta não se movia. A construção mantinha seu ar calmo e deserto, mas algo os congelava.
- Mãos à obra! - gritou Trouillefou. - Vamos arrombar a porta.
Ninguém deu um passo.
- Vejam só, há homens aqui com medo de uma viga - disse Clopin.
Um velho lhe dirigiu a palavra.
- Capitão, a porta é toda reforçada com barras de ferro, por isso os alicates são inúteis.
- O que seria então necessário para derrubá-la? - perguntou Clopin.
- Precisaríamos de um tronco para forçar a porta.
Trouillefou correu em direção à formidável tora e pôs o pé em cima dela.
- Aqui está! - gritou. - Os padres o enviaram.
Em seguida, fez uma saudação ridícula em direção à igreja:
- Obrigado, padres!
A brincadeira surtiu efeito, pois os malfeitores recuperaram a coragem e em pouco tempo a tora, levantada como uma pluma por duzentos braços vigorosos, foi lançada com fúria contra a grande porta que eles já haviam tentado abalar. Vista assim, iluminada pelas poucas tochas que os malfeitores espalhavam pela praça, a longa tora carregada pela multidão parecia um monstruoso animal com mil patas que atacava, com a cabeça abaixada, um gigante de pedra.
Ao choque da viga, a porta parcialmente metálica ressoou como um imenso tambor e a catedral inteira tremeu. No mesmo momento, uma chuva de grandes pedras começou a cair da parte superior da fachada sobre os atacantes, estourando crânios a torto e a direito. Então, mortos e feridos sangraram, amontoando-se sob os pés daqueles que ainda combatiam.
O leitor sem dúvida não supõe que esta resistência inesperada viesse exclusivamente de Quasímodo. A sorte também ajudou o corajoso surdo. Após descer para a plataforma entre as torres, seus pensamentos estavam confusos. Ele havia corrido durante alguns minutos ao longo da galeria, indo e vindo como um louco, observando de cima a massa compacta pronta a se abater sobre a igreja. Ele acabara de pensar em subir ao campanário e dar um sinal de alerta, mas antes que pudesse pôr o sino em movimento e emitir um único grito, a porta da igreja já havia sido golpeada dez vezes! O que fazer?
Repentinamente, ele se lembrou de que pedreiros haviam trabalhado durante o dia, consertando as paredes, o vigamento e o telhado da torre. Foi um raio de luz. A parede era de pedra; o telhado, de lata; o vigamento, de madeira.
Quasímodo correu para a torre. As câmaras inferiores realmente estavam cheias de materiais. Havia pilhas de pedregulhos, folhas de estanho em rolos, feixes de sarrafos, vigas sólidas já aplainadas pela serra, pilhas de entulho. Um arsenal completo.
O tempo era curto, os alicates e martelos trabalhavam embaixo. Com a força multiplicada pelo sentimento de perigo, ele levantou uma das vigas, a mais pesada, a mais longa, projetou-a para fora por uma janela e a lançou sobre o abismo. O enorme vigamento, nesta queda de vinte metros, raspando o paredão, quebrando as esculturas, girou várias vezes sobre si mesma como uma pá de moinho que viaja sozinha através do espaço. Por fim, atingiu o solo.
Quasímodo viu os malfeitores se dispersarem com a queda da tora. Ele aproveitou o espanto geral e empilhou silenciosamente entulho, pedras, pedregulhos e até os sacos de ferramentas dos pedreiros sobre o parapeito de onde a viga havia sido lançada.
Logo que eles se puseram a bater na grande porta, a chuva de pedras começou a cair e pareceu-lhes que a igreja se demolia sozinha sobre suas cabeças. Quem pudesse ver Quasímodo neste instante ficaria assustado. Ele se abaixava e levantava-se, alternadamente, com uma força inacreditável. Sua grande cabeça de gnomo se inclinava para além da murada; em seguida, uma pedra enorme caía, depois outra, depois outra. No entanto, os mendigos não se desencorajavam. A espessa porta sobre a qual exerciam seus esforços já havia tremido mais de vinte vezes sob o peso do tronco de carvalho, multiplicado pela força de cem homens. Os painéis rachavam, entalhes voavam em mil pedaços, as dobradiças, a cada abalo, saltavam em sobressalto sobre seus eixos.
A chuva de pedregulhos não era suficiente para afastar os atacantes. Neste momento de angústia, Quasímodo observou, ligeiramente abaixo do parapeito, dois longos beirais de pedra formando goteiras que conduziam a água das chuvas. Como eles desembocavam exatamente acima da porta, o sineiro teve uma idéia. Correu a buscar um feixe de madeiras em seu alojamento e pôs sobre ele muitos outros feixes de ripas e rolos de estanho, munições que ainda não havia utilizado. Ajeitando esta carga na frente do buraco dos beirais, ateou-lhe fogo com sua lanterna.
Durante este tempo, como as pedras não caíam mais, os malfeitores haviam parado de olhar para cima. Os bandidos se empurravam num grande tumulto em torno da porta já bastante deformada pelo tronco, mas ainda de pé. Agitados, eles esperavam pelo golpe final que iria escancará-la.
De repente, no momento em que se agrupavam para um último esforço, um urro, mais tremendo ainda do que havia explodido sob a tora, elevou-se no meio deles. Aqueles que não gritavam, os que ainda viviam, olharam. Dois jorros de estanho derretido caíam da parte superior do edifício no meio da multidão. Viam-se remexer moribundos parcialmente queimados, urrando de dor. Em volta destes dois jorros principais, havia gotas da chuva horrível que se dispersava sobre os atacantes.
A confusão foi geral. Fugiram em todas as direções tanto os mais audaciosos quanto os mais tímidos e o pátio ficou vazio uma segunda vez.
Todos os olhos haviam se elevado para o alto da igreja. Aquilo que viam era extraordinário. No topo da galeria mais alta, havia uma grande chama desordenada e furiosa, que subia entre dois campanários com turbilhões de faíscas, de onde o vento levantava às vezes uma faixa de fumaça. Abaixo desta chama, duas goteiras transformadas em bocas de monstros vomitavam sem descanso a chuva ardente.
Houve um silêncio de terror entre os vagabundos, durante o qual se ouviram apenas os gritos de alarme dos padres fechados em seu claustro. No entanto, os principais atacantes haviam se reunido sob um pórtico e discutiam a situação. Clopin Trouillefou mordia seus punhos com raiva.
- É impossível entrar! - murmurava entre os dentes.
- Vocês estão vendo aquele gigante que vai e vem diante do fogo? - alguém gritou.
- Caramba! - disse Clopin. - Maldito sineiro! É Quasímodo. Não há então nenhum meio para forçar esta porta? - acrescentou batendo o pé. - Teremos que partir, deixando nossa irmã ser enforcada amanhã? E o estudante Jean, onde está?
- Capitão Clopin - gritou um bandido -, aí vem ele!
- Plutão seja louvado! - disse Clopin. - Mas o que ele tem atrás de si?
Era realmente Jean, que corria rapidamente arrastando uma longa escada sobre o calçamento, mais resfolegante do que uma formiga atrelada a um feixe de mato vinte vezes mais longo do que ela.
- Vitória! - gritou o estudante. - Aqui está a escada dos estivadores do porto de Saint-Landry.
Clopin aproximou-se dele e perguntou:
- E o que faz você com ela?
- Eu a peguei - respondeu Jean ofegante. - Sabia onde estava: no galpão da casa do tenente.
- Sim - disse Clopin -, mas o que quer fazer com ela?
Jean olhou-o com uma expressão maliciosa, estalando os dedos como castanholas.
- O que desejo fazer? Está vendo aquela linha de estátuas com cara de imbecis, acima dos três portais?
- Sim. Então...?
- É a galeria dos reis da França.
- E daí? - disse Clopin.
- Existe na extremidade da galeria uma porta fechada apenas com um cadeado. Com esta escada, subirei ate lá e entrarei na igreja.
- Deixe-me subir primeiro - pediu alguém.
- Não, camarada, ela é minha. Venha e será o segundo.
Jean pôs-se a correr sobre a praça, gritando:
- Comigo, homens!
Num momento a escada foi erguida e apoiada ao parapeito. A multidão dos malfeitores que emitia grandes gritos amontoou-se na parte inferior para subir, mas Jean, valendo-se de seu direito, foi o primeiro a pôr o pé nos degraus. O trajeto era bem longo e o estudante subia lentamente, pois segurava com uma das mãos cada degrau e com a outra, sua arma. Os malfeitores o seguiam. A linha de costas encouraçadas subindo parecia uma serpente com escamas de aço que se erguia contra a igreja.
O estudante finalmente atingiu o balcão da galeria, saltando sobre ele agilmente. Sentindo-se soberano, soltou um grito de alegria, mas, de repente, parou petrificado. Acabara de perceber, atrás de uma estátua, Quasímodo escondido nas trevas, com seu olho faiscante.
Antes que o segundo invasor conseguisse pôr o pé sobre a galeria, o formidável corcunda aproximou-se da ponta da escada, segurando, sem dizer uma palavra, a extremidade dos dois montantes com as mãos potentes. Depois, ergueu-os, afastou-os da parede, empurrando-os com uma força sobre-humana contra a praça. A escada, lançada para trás, pareceu hesitar, oscilou e em seguida se abateu sobre o solo com a carga dos bandidos.
Gritos de cólera e dor sucederam os primeiros rumores de triunfo. Quasímodo, impassível, com os dois cotovelos apoiados sobre o parapeito, olhava.
Jean Frollo, por sua vez, estava numa situação crítica. Enquanto o corcunda brincava com a escada, o aluno correu para a portinhola, mas ela estava trancada, o que o obrigou a ficar escondido atrás de um rei de pedra.
Nos primeiros momentos, o sineiro não se preocupou com ele, mas, por fim, girou a cabeça e endireitou-se repentinamente. Ele acabara de descobrir o esconderijo. Jean preparou-se para o duro choque, mas o corcunda continuou imóvel.
- O que há? - disse Jean. - Por que me olha assim?
Enquanto falava, o jovem estudante dissimuladamente preparava sua arma.
- Quasímodo! - gritou. -Vou mudar seu nome. De agora em diante você será chamado de "o cego de Notre-Dame".
O disparo partiu. A flecha assobiou e fixou-se no braço esquerdo do corcunda. Para Quasímodo, foi apenas um arranhão. Ele levou a mão à flecha, arrancou-a e quebrou-a tranquilamente sobre o joelho. Em seguida, deixou cair os dois pedaços. Jean não teve tempo de atirar uma segunda vez. Quasímodo inspirou ruidosamente, saltou como um gafanhoto e caiu sobre o estudante.
Com a mão esquerda, ele segurou os dois braços de Jean. Com a direita, arrancou-lhe, com uma lentidão sinistra, todas as peças da armadura: a espada, os punhais, o capacete, a couraça, as braçadeiras.
Quando o estudante se viu desarmado e despido por estas temíveis mãos, não tentou falar, mas pôs-se a rir escandalosamente e a cantar, com intrépida indiferença, uma canção popular.
Não terminou. Quasímodo, com uma só mão segurou o estudante pelos pés e girou-o sobre o abismo. Em seguida, ouviu-se um barulho de ossos estourando contra a parede. Algo caiu, mas parou a um terço da queda em uma saliência da construção. Era um corpo morto que permaneceu pendurado ali. Um grito de horror partiu dos malfeitores.
- Vingança! - gritou Clopin.
- Ao ataque! - respondeu a multidão.
Seguiu-se um urro prodigioso. A morte do estudante impeliu a multidão. O ódio encontrou escadas, multiplicou as tochas e, ao fim de alguns minutos, Quasímodo, confuso, viu um terrível formigueiro subir de todos os lados para atacar Notre-Dame. Aqueles que não tinham escadas contavam com cordas com nós, aqueles que não tinham cordas escalavam os relevos das esculturas. A fúria fazia aumentar os contornos selvagens. Todas as caretas atacavam Quasímodo.
A praça foi iluminada por mil tochas. O pátio resplandecia e lançava uma cintilação para o céu. A fogueira acesa sobre a plataforma continuava a queimar e clareava a cidade ao longe. A enorme silhueta das torres, que avançava por sobre os tetos de Paris, fazia nesta claridade um talho de sombra. A cidade parecia ter se comovido. Sinos de alerta distantes reclamavam. Os malfeitores urravam, arfavam, xingavam, subiam. Quasímodo, impotente contra tantos inimigos, temendo pela sorte de Esmeralda, vendo estas faces furiosas se aproximarem cada vez mais de sua galeria, pedia um milagre ao céu e torcia as mãos de desespero.