O Corcunda de Notre-Dame, Victor Hugo - 4

CAPÍTULO 4
As boas almas

Dezesseis anos antes da época em que se passa esta história, no primeiro domingo após a Páscoa, uma pequena criatura foi depositada, após a missa, na igreja de Notre-Dame, no estrado de madeira próximo ao altar. Sobre este estrado era costume colocar crianças abandonadas. Quem quisesse, poderia pegá-las ali.
O pequeno ser vivo que lá repousava, naquela manhã do ano de 1467, parecia excitar, a um grau elevado, a curiosidade do grupo que se formara, composto em grande parte por mulheres velhas. Na primeira fila, havia quatro delas, que pelo capuz cinzento deixavam adivinhar sua ligação com alguma confraria devota. Corajosas, elas quebravam alegremente o voto de silêncio que tinham sido obrigadas a fazer:
- O que é aquilo, minha irmã? - dizia uma, observando a pequena criatura que resmungava e se retorcia sobre o estrado.
- Não sei nada sobre crianças - respondeu a outra -, mas deve ser pecado olhar para esta.
- É um monstro de abominação tal criatura!
- Minha irmã não vê que este pequeno monstro tem pelo menos quatro anos.
Na verdade, a criança não era recém-nascida. Tratava-se de um pequeno volume que se remexia bastante, enrolado num saco, somente com a cabeça, bastante disforme, para fora. Nela se via uma floresta de cabelos ruivos, um só olho, a boca e os dentes. O olho chorava, a boca gritava e os dentes pareciam apenas querer morder. O todo se debatia no saco e causava grande surpresa na multidão, que aumentava incessantemente em torno dele.
Durante alguns momentos, um jovem padre ouviu as palavras do grupo. Era uma figura severa: testa larga e olhar profundo. Ele afastou silenciosamente a aglomeração de pessoas, examinou a criança e estendeu a mão para ela.
- Eu irei adotar esta criança - disse o padre.
Depois, enrolou-a com um pedaço de sua batina e a levou. A assistência seguiu-o com olhos amedrontados. Logo, ele desapareceu através da porta vermelha que levava da igreja ao claustro. Passada a surpresa inicial, uma das mulheres exclamou:
- Eu havia mesmo dito, irmãs, que este jovem sacerdote, Cláudio Frollo, é um feiticeiro!
Cláudio Frollo não era um personagem vulgar. Pertencente à pequena nobreza, desde a infância, ele havia sido destinado pelos pais à carreira eclesiástica. Era uma criança triste, solene e séria, que estudava com ardor e aprendia rapidamente. Assim, dedicou-se à teologia, à medicina e às ciências.
Aos dezoito anos, a vida parecia ter um único objetivo para o jovem rapaz: os estudos. Foi por volta desta época que o verão excessivo de 1466 fez estourar a grande peste que matou mais de quarenta mil criaturas na cidade de
Paris. Correu um rumor na universidade de que a rua Tirechappe fora especialmente devastada pela doença. O jovem aluno deslocou-se, extremamente alarmado, à casa paterna. Quando entrou, o pai e a mãe já estavam mortos, enquanto o único irmão gritava, abandonado no berço. Era tudo o que havia restado de sua família. Cláudio pegou a criança nos braços e saiu, pensativo.
Tal catástrofe causou uma crise na vida do rapaz: órfão, herdeiro e chefe de família com dezenove anos. Piedoso, encheu-se de paixão e devoção para com o irmão.
O pequeno que caía abruptamente do céu em seus braços fez dele um novo homem. A criatura frágil o comoveu até o fundo das entranhas e, pensador agudo que era, Cláudio pôs-se a refletir sobre Jean com uma misericórdia infinita. Dedicou-lhe preocupação e cuidado, como se faz a algo muito delicado. Foi mais do que um irmão para a criança, foi uma mãe.
Cláudio contratou uma ama de leite para o menino e encarou a vida com muita seriedade. A lembrança do pequeno irmão tornou-se a finalidade de seus estudos, unindo-o mais do que nunca à vocação religiosa.
No momento em que retornava da missa, sua atenção foi chamada pelo grupo de velhas que murmuravam em torno do estrado onde eram depositadas as crianças enjeitadas. Foi então que se aproximou da pequena criatura infeliz. A aflição, a deformidade, o abandono, a recordação de seu jovem irmão, tudo aquilo falava a seu coração. Uma grande piedade o comoveu e ele carregou a criança.
Ao tirá-la do saco, achou-a bem disforme, de fato. O pobrezinho tinha uma verruga sobre o olho, a cabeça enterrada nos ombros, a coluna vertebral arqueada e as pernas torcidas, mas parecia ativo e, embora fosse impossível saber em que língua ele balbuciava, seu choro prenunciava alguma força e saúde. A compaixão de Cláudio cresceu com a feiúra do menino. Ele fez votos de criar a criança pelo amor de seu irmão. Ao batizá-la, deu-lhe o nome de Quasímodo tanto em homenagem ao primeiro dia depois da Páscoa, quanto por se tratar de uma criatura incompleta, um quase ser.
Em 1482, Quasímodo, já crescido, tornara-se o sineiro da catedral de Notre-Dame graças a seu pai adotivo, Cláudio Frollo, agora arcebispo.
Com o tempo, criou-se uma relação íntima que unia o tocador de sino à igreja. Quasímodo fez de Notre-Dame seu ninho, sua casa, seu universo. Não havia profundidade que ele não tivesse penetrado, altura que não tivesse escalado. Freqüentemente,, subia pela fachada, servindo-se apenas das asperezas da construção. Graças aos saltos e às escaladas, às brincadeiras no meio dos abismos da gigantesca catedral, tornara-se, de certa maneira, macaco e cabra montanhesa.
Foi com grande esforço e paciência que Cláudio Frollo conseguiu ensinar-lhe a falar. Mas havia uma fatalidade ligada à pobre criança. Sineiro de Notre-Dame há catorze anos, os sinos haviam perfurado seus tímpanos e ele tinha ficado surdo. Sua alma mergulhou numa noite profunda. A surdez tornou-o mudo, porque, para não ser motivo do riso alheio, ele decidiu resolutamente manter um silêncio que nunca quebrava, exceto quando estava só. E ele se tornou mau. Mau na verdade porque era selvagem. E selvagem porque era feio. Sua força, extraordinariamente desenvolvida, era uma causa a mais para a maldade.
Desde os primeiros passos entre os homens, ele se sentiu isolado. Ao crescer, encontrou apenas ódio em torno de si, então, olhava a humanidade com tristeza. Notre-Dame era suficiente. A presença desse ser extraordinário fazia circular em toda a catedral um sopro de vida. Quando ele estava ali, parecia que as estátuas das galerias respiravam e até se moviam.
Havia apenas uma criatura humana que Quasímodo excluía de sua maldade e de seu ódio para com os outros, de quem ele gostava tanto (mais, talvez) quanto sua catedral: Cláudio Frollo. Simples: Cláudio Frollo o havia adotado, criado, alimentado, protegido, e, por fim, o havia feito sineiro. O reconhecimento de Quasímodo era profundo, ardente, sem limites. Embora o rosto de seu pai adotivo fosse freqüentemente sombrio e sua palavra habitualmente curta, dura e imperiosa, nunca sua gratidão recuou. O arcebispo tinha em Quasímodo o escravo mais submisso. Quando ficou surdo, ele e dom Cláudio passaram a utilizar uma língua de sinais compreendida apenas por ambos. Desta maneira, o arcebispo era o único ser humano com quem Quasímodo se comunicava. No mundo, somente a catedral de Notre-Dame e dom Cláudio Frollo se relacionavam com ele.
Em 1482, Quasímodo tinha cerca de vinte anos e dom Cláudio, cerca de trinta e seis: um tinha crescido; o outro, envelhecido.
O arcebispo não abandonou a educação de seu jovem irmão, mas com o tempo frustrou-se com esta criança que havia sido tão doce. O pequeno Jean Frollo não cresceu na direção que dom Cláudio desejara. O irmão mais novo tomou o caminho da preguiça, da ignorância e do vício. Era muito bagunceiro, o que fazia franzir a sobrancelha de dom Cláudio, embora, quando fosse engraçado e espirituoso, proporcionasse ao irmão mais velho boas risadas.
Dom Cláudio, então, desencorajado em suas afeições humanas, tinha-se lançado com maior entrega aos braços da ciência, esta irmã que não ri diante de nossos narizes. Tornou-se assim cada vez mais sábio e, ao mesmo tempo, mais rígido como padre e mais triste como homem.
Tomado por uma paixão singular por Notre-Dame, passava horas intermináveis contemplando as esculturas do portal. Ele se acomodara num pequeno quarto numa das torres que dava para a Praça da Greve, bem ao lado do campanário. Ninguém entrava ali. Via-se freqüentemente, à noite, por uma pequena janela, uma claridade vermelha, intermitente, estranha - fruto de suas experiências com a alquimia. À sombra e àquela altura, isto tinha um efeito singular.
Assim o arcebispo, apesar da austeridade de sua vida, não caíra nas graças das boas almas, que não hesitavam em acusá-lo de bruxaria.
Observava-se, além disso, que seu horror para com os vagabundos parecia aumentar havia algum tempo. Ele solicitara ao bispo uma lei que proibisse expressamente aos ciganos dançar em torno da igreja.
Assim, ele e o sineiro eram bem pouco apreciados nas proximidades da catedral. Quando Cláudio e Quasímodo saíam juntos caminhando, o empregado seguindo o mestre, nas ruas estreitas e sombrias do quarteirão de Notre-Dame, sempre alguns palavrões e algumas gozações incomodavam a passagem dos dois. Às vezes, era um menino ousado que arriscava a pele e os ossos para ter o prazer indescritível de espetar um alfinete na Corcunda de Quasímodo. Às vezes, um grupo de velhas, reunido na sombra de um pórtico, resmungava em voz alta e lançava uma irônica saudação: "Aí vai um que tem a alma igual ao corpo do outro!". Ou era um bando de alunos que os cumprimentava com algumas vaias. Geralmente, o insulto passava despercebido pelo padre e pelo sineiro. Para escutar estas coisas graciosas, Quasímodo era surdo; e dom Cláudio, bastante distraído.